Alêtheia
Ser-sem-pensar
domingo, 29 de abril de 2012
sábado, 13 de novembro de 2010
domingo, 23 de dezembro de 2007
Delirius tremens (3ª parte)
3ª parte
Próximo Acto
1.
A cena passa-se, onde o campo de trigo cede o lugar à forma vazia de uma ausência cortante, Entretijiolada
Apresento-me, eis a folha em branco, os meus suspiros almaços, Entremim e eu,
Sei que não sei, apresento-me, eis a espera de quem não sabe porque diabo espera, a resposta que não se faz esperar, Entre mim e eu,
A presença sonhada de quem me escuta.
2.
Carregas a arma e já estou a sonhar, num instante disparas, distingo vultos tresmalhados com o teu nome e identifico-nos em livre trânsito pela realidade, A maluca fala de Percival, Greg voltou a apontar o rosto do motorista do 31 como seu, saímos juntos para comprar um olhos bonitos para a morte, Começo a acreditar que é ele a causa da minha perda de sono, a par dos cafés que bebo, e dos cigarros que fumo, Estou em crer que é tudo uma perda de tempo, que a dificuldade em permanecer neste quarto se deve à tempestade que se aproxima, Não tenho dúvidas de que será imensa, de há muito embrutecida;
Apanhe-se a roupa, calem-se os meninos, esta veio para nos levar Greg, e à maluca que luta com a morte, Os pombos estão como nós e não sabem para onde voar, vai tudo pelos ares, Segura as rédeas, os cavalos que não se esqueçam de voar, só me vem à ideia a chuva nas vidraças no coração de Setembro, a corrida de gotículas no párabrisas, o resto passou, já não é, foi-se com os outros
Desta vez prometo que começo e só páro quando não puder prosseguir, que as palavras virão depois do chá, sou fraco, tão fraco que não me seguro nas pernas, mas na ideia de andar, tão fraco que carrego o mundo às costas como um titanzito de pouca monta que libertará Prometeu num apocalipse entardecida.
3.
Agora, agora, dois agoras e o mesmo depois
Agora, um agora e um depois
Agora, “Eu”
Outrora um relógio que tinha um braço
Com queda para as letras
Agora, capaz de te abrir acima do sol, apeado
Aqui, à minha espera por este rio acima
Herdeiro de uma catásfrofre lusomaritima
Na pulsão de beijar a coisa
Num não, não-te-permito-morrer-já
Mas logo que as maçãs fiquem mais belas
E a força corte a direito a loucura
Fazendo tábua rasa ao tédio
Agora, deixo-te e vou à cata do vento
Ou do segredo que o cospe
Numa sensação de relaxa-me-saber-que-não-sei-o-quê
E que devo ter algo a dizer
O que me fode é esta asneirada entre os dentes
A calma que o raio do yoga deve trazer
não saber porque mostro isto tudo
Mas ainda assim, supondo a tua perfeição
Ser então o teu amante , anos sessenta-setenta
E, um agora depois
Em que as putas se afeiçoam-se a deuses ex machina
Fico à espera como me mandaram
Um agora, e um depois
Rimavas comigo num verso branco
Em que tudo soava a delírio
E era Prometeu que gemia,
Em Outubro sublimava um hino ao caos
Aproximando-se a verdade pela alcatifa ultramarina,
A pés de veludo azul,
Ameaçou foder tudo o que se mexesse
De volta à fresta que o deitou cá para dentro
Da mente de um americano
Transgressor da estética do código da estrada
Algures mais acima, junto à nuca
Num musical crescente em altura e nós
À praia desse beijo de maçã
Nessa mesma noite submergida
Em prelúdio fino
4.
Afogado no mármore branco de uma circunspecção de rotina
Às paredes roxas dum dorso sublime
Dirige-se ao centro para arder
Na essência unho-roedora
De um cavalo a vapor
Urdida electricamente sobre os telhados
Pelos corpos em chamas
Súbita e invalidamente ostentada
A clavículas de sabonete
Silabação turva d’ absoluto,
Na variação ininterrupta de uma cidade fantasma
Vasculhada no faro engripado duma puta dos subúrbios
Na rosa seca que colhe entre as pernas
“E talvez...
um campo de papoilas”, adiante
a esta vontade de ser mundo
Talvez chame os trovões a permanecer idênticos
num-não-é-medo é o que quer que possa significar
a estátua de Neptuno,
E talvez a noite nos embale
fremida de irrestrições
e o vagido percorra tectonicamente
as entranhas do teu sopro
Talvez corra a ver
os corpos mutilados na praça
Talvez as paredes se fundam no nosso ver dopamínico
e a casa voe na porção escumante dos teus suspiros
Talvez me entendas, talvez não fique para saber
e caia de novo, de costas largas, tão aí, à mão de colher
e prefira a faixa ao vivo,
suspeitando da almofada, em escalpelações surreais
Talvez porque debaixo do córtex cresceu
uma estepe com mais olhos do que barriga
e dois espaços floridos entrelaçando-nos as mãos
No rumor das sombras
No arranhão da minha nascida
Que mais parece uma cintilação escorregadia
Nas parábolas absurdas da minha capitania
Numa trituração pulmonar
Que mais parece um manifesto d‘ondas engalanadas
Numa solidão de margem,
Nas entrelinhas para lá do poema,
À estrada de molas coloridas, ao balancé da máquina de costura- automóvel, que me trouxe directamente aqui,
Ao trampolim surreal duma trova pós - pós – punk
Que mais parece um testemunho sob tortura...
5.
O problema sou eu
Eu, só eu
que me iludo
És tu, só tu
que me anseias
lunarmente
É ele, só ele que se vem nas dunas
Somos nós, só nós
que desaprendemos o caminho
Vós, sobretudos esfíngicos
São eles, só eles e um abismo d’entremins
aos gritos
É uma ideia de espera.
Aluvião psicanalítico
1.
Encontra-se confortavelmente
De cabeça baixa
prenhe de estética
japonesa
sonho filmado
fotograma almado
pai de partida para o Porto
ajuste de contas aportado
imortalidade da boca para fora
vulnerabilidade intransigente
cartas na mesa
urgência analítico-vidente
aura social volúvel
libertinagem grave
perigo respiratório
estrada florestal
decepada como a serpente
a golpe de espada
suposição fatal
imortalidade pecaminosa
renascimento da ferrugem
cabeça gatiforme
dorsado réptil
silibação grotesca
manápulas de poeta
romantismo a talho de foice
martelo imperial
combustão estrelada
compensação
frustrada
cantilena de colher
demência original
expectativa
aplauso
expectativa
loucura
expectativa
morte
expectativa
lua de Saturno
familiar
queda ao mar
água engolida
afogamento eminente
poético
hiperbólico
delírio, inacabado
incapaz
devastação
talvez
novidade aérea inconsciente
rima ausente, recusa audaz
jorro desengonçado
valsa trôpega
papel de parede
simetria de pauta
2.
Candelabro fundeado
essência ilumino-retráctil
Madrepérola contadora de histórias
Invasão surpreendida entre bocejos
Ininterrupção sustida a custo
Segredo cifrado
pela raiz, como a fonte
Convidado a discorrer imelodicamente
Prosápia de incandescer violinos
Avidez sonora trauteante de abismos
Vontade salubre de esvair bolhas
Olhar plácido intransigente
Ocaso flutuante-adormecente
Lamento volúvel ensimesmado
Grasnar electromecânico
Escultura de silhueta esguia
Egoretininte
Pulsão poética
Segunda vaga sombria
Neo agoiro
Descanso diurno
Gazeta ordinária
Às apalpadelas
Trapézio sem rede
Colapso trigonométrico
Descrição difícil
Dias estranhos
Metamorfose
Festim de abelhas
Planeidade d’alcachofras
Conto berrado
Crepúsculo porcelano
Sortido d’ ósculos
Veneração ruidosa
Senhoras de branco
machos de saias
Filigrana pontífice
Geração dromedária
Cosmicidade engessada
Abstracção podre
Fermentação espírita
Atomismo etéreo
Mónada sinfónica
Transposição aparente
Calçada indisposta
Refluxo intransponível
Trejeitos defensivos
Ruína pleonásmica
Desenlace inextenso
Ideário inconsistente
Congregação silenciosa
Resistência passiva
Confissão frívola
Amputação benevolente
Engajamento corante
Camaleonar esplendoroso
Toalha ao sol
Traineira de berço
Alvéloa periódica
Cirandação desvã
Personificação malévola
Antropofagia salutar
Virilidade cadafálsica
Roedura aftosa
Derrocada onâmica
Sementeira vulcânica
Desabrochar cavernoso
Adjectivação primeva
Colheita tardia
Melopeia ociosa
Outro dia...
Vagar ambulatório
1.
Entre o tempo e a sua liquidação
atempada,
Entre a reverberação flácida de instantes
E outra forma de passar à história,
Entre o nosso linguajar senil
E esta vigência ambulatória
Que nos toma pelas mãos,
Entre a escotilha translúcida
E o que se adivinha dos passos,
Entre metal e forja
Poema e psiquismo,
Entre circunvoluções e tabaco
Entre empinações de sondas anguladas
E verticalidades lúbricas,
Entre o céu de lá e este lugar alto
esbaforido mental,
Entre pés acelerantes
E passeios corridos,
Entre semáforos e mendicência
Esmalte e palitos de pinho
Bigodes fartos e palatos boçais,
Entre o cilindramento a sós
E a sucessividade alternada de presenças,
Entre caos e confusão
Noite e dia,
Entre a altacostura terráquea
E um punhado de divagações atlânticas,
Entre pão e fermentações alciónicas
Entre gritos encenados
E unidade estilhaçada
Entre escritos estratosfeéricos
E convulsões abstractas,
Entre as mãos
E o tempo levado a sentir
2.
A formulação simples
sobre os malmequeres ensandecidos
A vagidão que parece que tenho
em comum com o jardim da estrela
O peso que carrego
em périplo espacial
como uma solução d’ enxofre
vertida à tarde em serviços de chá
A bailarina de braços partidos
ao rangerange cordato da melodia encaixotada
A chama de agoras engomados
ansiando o nunca mais é
A rarefacção lírica
dum divórcio em branco
3.
!Oh, sombria divagação
Lucubração paralítica?
!Oh, quem espero
O turbilhão que o veste?
!Oh, tontada aero literária
Inquisição materna,
ver aquático?
!Oh, enfim a origem
Caminho diamantino,
estarrecimento de génio?
!Oh, poção tóxico-ambrosina,
Olimpo contrafeito?
!Oh, máquina de decidir tinos
Destino de musa?
4.
Onde foi a noite das pálpebras duras
é agora a demência
polaridade sináptica
têmporas desengolfadas a vapor!
Por que deserto te abres?
Porque fenda me consentes
d’agora em diante?
Pela meia fibrosa que te trepa pernas acima
ao debrum sarapintado onde equilibras
os cotos de porcelana?,
Pelo tocar-te só
e sentir-me o reflexo desses dedos?,
Pela exalação espelhada com que te esbato
à média luz de encontro a Platão,
elipticorectangularmente enfaixada
nas persianas?,
Pelo que não me impede de correr por aí
calibrado de insónias e gritos,
e de te apertar transparecida
nesse atentar-sobretudo-contra-tudo
o que permanece desse lado,
colapso sobre colapso?,
No estertor mediúnico
da fábula infame
que conservas debaixo das unhas
como um mote emprestado?:
Abaixo! a rede celular elástica,
A protoestrutura medular,
O vertido químico de sombras diurnas
professadas desde o abismo
em contagem estelar,
Os ecos sumarentos de uma polvilhação calcária
como um canto voraz e cristalizante,
A persuasão colérica das cores
como uma segregação perene
desabrochada paradoxalmente
de mãos hirtas aos céus,
A fuga vendada sobre um só gume
endemoninhado, como o húmus
recoberto de folhas secas,
O silêncio chumbado
que te amordaça sobre a tez lívida,
E o ventre, a golpes de pulso,
A fúria de transpirar ruas
a toque de caixa
no sopro da memória,
antes que o céu fosse só tecto,
Não neste mar mas no refluxo secreto
das nascentes,
No grasnar rouco da tarde
de quando setembro já só havia
em melancolia e suspiro,
Num rosto forrado de noite,
No que apetece cantar de breve
vagamente isolado, beatífico
de par em par,
vulcanizado de flores
Veloz, grave, degenerado
Pomar aéreo,
Onde todas as manhãs são procuradas
pelas dunas membradas,
No frenesi vivo de um braço de areia
agitado por milagre
assim, por que sim
sentido, impregnado, guiado
de cadência verborrenta
Sobre tudo, assim
pelo ter que ser
fulgor liquefeito
convulsão de girassóis
por mais um dia, invejoso
da criança que nunca viu o mar
e da pressa que a leva,
Pelo corredor fluído do Bus
por culpa destes tropeções quase meus
e por mais um dia de profundo tédio
morto num instante,
acordado nu, cego, surdo, absorto algures
invadido de novo,
Ao cume pueril
chovido de mins,
Nas pernas esguias
que te enrolam o dorso,
Na poeira astrológica
que te atiro aos olhos
Por nova inalação de margem
4.
Tremiam as mãos, inchavam os pés
na chatice do caminho
Proliferavam as feras, delizavam as lâminas
consensualmente ensonadas
Numa seiva de moléculas deitada de costas
escorrendo palavras aos pares
Lá de cima ao tombos
de volta aos braços esguios, às auto-estradas
ao meu coração berrado de borboletas
Queriam o mundo e queriam-no então
amavam o fundo e tudo
vomitavam entranhas, colhiam as flores
atrás do pano que sobe ao primeiro acto
à corda que os dependura
como a um decote de opereta
ao último acto libertador
Queriam falar de ti mas as línguas entaramelavam-se
e atrás delas a boca infernal engolia toda a merda
atrás dela, eram dezasseis horas no purgatório
e quatro minutos volvidos
eram os lençóis duma prisão Líbia
5.
Quem avançará comigo na escuridão
com quantos filhos conta agora a noite
vindos dos bosques e dos corações das crisálidas,
das cordilheiras postas a nu, das guardas vãs,
das quedas abruptas, dos mistérios de um tipo que tocava flauta
d’alguém importante
de uma nascente caótica, das vagas ou por elas
com o desprezo do que se eleva e desfaz na areia
Descalço e despido de rosto
numa precisão anamnésica de vir
de sempre, saudosa do desperdício alvo dos dias
Desarmado, aparentemente razoável
como as cores florescidas a despropósito
Só.
6.
Então, vem ver os dentes novos da avó
Vem, não nos deixes
A sós com o que fizemos de nós
Vem, não fiques à beira
A ver-nos passar
Como quem não quer a coisa quieta
Podes dançar, beijá-la a correr
E embarcar,
Vem, esquecer-te de mim
Connosco à ilharga
Enrola-me lá nisso
Atiça-nos a porra do lume
Corre daqui para fora
Ao labirinto
De tudo sonhado
Sobre tudo
Desgraçadamente iludido
Vem
7.
Aqui o limbo,
Além a serpente de alças equinócias.
Aqui o que jaze,
Além o que foge à dor, conformado.
Aqui o entusiasmo,
Além o vazio.
Aqui e além,
o silêncio das feras,
a harmonia do universo
Aqui a parte,
Além a ideia do todo,
o tempo das histórias a diesel
a resistência das violetas,
tempo de gritos e amor travestido...
Aqui o delírio,
Além, e depois dele
A suspeita de mais nada.
2º Dto da paranóia
1.
Os sacanas riem-se de mim
que não sei a quantas ando,
parece que sou perito em não saber
onde ficou a minha outra vida,
para que serve a poesia do meu neto,
por onde entro para casa
qual a chave que abre a portinhola do correio
em que esquerda fica o outro coração
o que estou a beber ou
onde ficou o meu poder de policiar ruas
Os sacanas riem-se da merda do velho
que conta o dinheiro em paus
dividido entre os cafés do bairro e os cafés da aldeia
nuns e outros, pela mesma poção
a mesma treta alardeada
Os sacanas andam lá pelo interior a encavar as velhas
e depois deitam-nas ao rio:
– isto há gente para tudo;
parece que se puseram na mulher do Pianço
– uma corja de bandalhos...
Riem-se da caixa de cartão que te serve de mala
das golas surro-abastadas dessa tua miséria tola
dos dentes pousados na mesa do café snack bar
qualquer coisa a branco num toldo,
da perdição de todos os dias
2.
Pedi-te uma daquelas coisas que andam pelo céu,
trouxeste-me uma pistola desmunida
e o dever de dispará-la a matar.
Hoje sou como tu, um velho fumador de ópio
deslindado-ocioso
Que perscruta o mundo daqui
num gorjeio almado sobre as serras,
levado em braços à última morada
chorado e esquecido num mergulho de rio
no delírio que o busca
dentre as coisas do mundo
em exalações de aguarela
Que berra o teu nome à toa
e perverte a ordem do tempo
na placidez seráfica das feras,
Que vasculha dentro de ti
às apalpadelas de mim
e engendra esta forma de ficar só
3.
E logo que a manhã o chamou da larga espera de um dia que era afinal
o último
O coitado subiu a bordo e accionou o unicórnio alado estacado junto
ao leme
E quando as filhas do tédio – Rotina e Solidão –, o agarraram pelos
colarinhos
Deixou para trás um ai e embarcou só numa ideia louca de
intemporalidade
Apertou o sobretudo até cima, erguendo-lhe a gola em riste
Passou a mão pela cabeça e vaporizou-se no fumo azul do seu último
cigarro,
Abandonando o poema num amplexo entre margens
dobrou a esquina e começou o delírio.
Mitopoema
1.
Deixava-se escrever nua da cintura para os lados
Escusado será dizer
Que o amor tudo vencia
Que havia encostas de desenvoltura
Deixadas a correr
Que o seu avançar se fizera lento
Que estava Eu e a Ausência trémula de mim
Miticamente fecundada,
Os raios que me amadureceram,
O ânimo que me agarrou pelos braços
A ladainha relentada num labirinto de espigas
Sulcado aos passos interditos de um anseio de alucinar luas,
A iminência nocturna de sempre partir.
2.
Luz à face do abismo
Palavras e tempo
Condenadas ao ser vivente
Paixão inclemente
Carne e gordura
As águas e o andar sobre elas
Um raio que parte
E um oceano que divide
Houve por que guardar o paraíso
E criar o rapaz,
Para que a terra frutificasse
E a obra soubesse renascer,
Por que escrever
E assumir a culpa, confessar
A loucura de haver alguma coisa
O livro escancarado
Num gritar de socorro
Que os poetas conhecem
Por dentro
3.
A origem revelada
Cosmologicamente
Num ponto desdobrado em muitos
A explosão das estrelas
A essência absolutamente ferida
Vertida d’instantes
4.
Conto-te ó Tempo como tudo se passou:
À frente e primeiro que tudo seguia o Caos, e dele não havia sombra parecença ou pensar.
Por cima resfolegava a Noite e as suas convulsões eram consteladas
Medonha crescia a noite e o querer possuí-la
trazia pela mão essa raça ferida d’absoluto,
arrastando em seu nome as asas, como um testemunho ensandecido.
Depois, quando tudo já podia nada parecer e a confusão ganhava flor
sucederam-se as imagens como crias, multiplicadas sob as ordens pouco claras do engenheiro celestial,
Ascendiam às montanhas inspiradas de vento
E respirar devia-se, sonhar também,
Mas o Caos já se amava ou dizia-se perdido entre flores e espuma,
E havia alguma coisa em torno do principio, escaqueirado em dois murmúrios,
Havia um que sofria de Amor e ao Caos obcecava
um tal que se dizia possível, recorrendo a um principio
menos usual de supra-realidade
Havia outro que não se incomodava de habitar alguns romances franceses,
E trazia a cara de quem vive da colheita das censuras, pois as mãos encontrei um tudo nada mascarradas de fuligem de um género ansioso metaviolador.
A dificuldade passava pelo processo contra o Tempo
que parecia escutar também ele o canto algodoado de Morfeu
embora encolhesse os ombros ritmadamente como que a dizer:
– Não compreendo patavina...
A expressão mostrava no entanto tratar-se de algo importante
ou então, mentiam bem as sacristas escondidas atrás dos caniçais no seu recreio noctívago,
de seios emboscados no turbilhão que troca as agulhas do sono.
Os poetas ficavam por lá esquecidos
e a palavra sofria no lugar do abismo
a harmonia vencia o amor pelo cansaço
cindindo a totalidade em pares infindos
a Vida seguia enfim ao seu termo etéreo,
De elmo coruscante e lança em vez de braço
Próximo Acto
1.
A cena passa-se, onde o campo de trigo cede o lugar à forma vazia de uma ausência cortante, Entretijiolada
Apresento-me, eis a folha em branco, os meus suspiros almaços, Entremim e eu,
Sei que não sei, apresento-me, eis a espera de quem não sabe porque diabo espera, a resposta que não se faz esperar, Entre mim e eu,
A presença sonhada de quem me escuta.
2.
Carregas a arma e já estou a sonhar, num instante disparas, distingo vultos tresmalhados com o teu nome e identifico-nos em livre trânsito pela realidade, A maluca fala de Percival, Greg voltou a apontar o rosto do motorista do 31 como seu, saímos juntos para comprar um olhos bonitos para a morte, Começo a acreditar que é ele a causa da minha perda de sono, a par dos cafés que bebo, e dos cigarros que fumo, Estou em crer que é tudo uma perda de tempo, que a dificuldade em permanecer neste quarto se deve à tempestade que se aproxima, Não tenho dúvidas de que será imensa, de há muito embrutecida;
Apanhe-se a roupa, calem-se os meninos, esta veio para nos levar Greg, e à maluca que luta com a morte, Os pombos estão como nós e não sabem para onde voar, vai tudo pelos ares, Segura as rédeas, os cavalos que não se esqueçam de voar, só me vem à ideia a chuva nas vidraças no coração de Setembro, a corrida de gotículas no párabrisas, o resto passou, já não é, foi-se com os outros
Desta vez prometo que começo e só páro quando não puder prosseguir, que as palavras virão depois do chá, sou fraco, tão fraco que não me seguro nas pernas, mas na ideia de andar, tão fraco que carrego o mundo às costas como um titanzito de pouca monta que libertará Prometeu num apocalipse entardecida.
3.
Agora, agora, dois agoras e o mesmo depois
Agora, um agora e um depois
Agora, “Eu”
Outrora um relógio que tinha um braço
Com queda para as letras
Agora, capaz de te abrir acima do sol, apeado
Aqui, à minha espera por este rio acima
Herdeiro de uma catásfrofre lusomaritima
Na pulsão de beijar a coisa
Num não, não-te-permito-morrer-já
Mas logo que as maçãs fiquem mais belas
E a força corte a direito a loucura
Fazendo tábua rasa ao tédio
Agora, deixo-te e vou à cata do vento
Ou do segredo que o cospe
Numa sensação de relaxa-me-saber-que-não-sei-o-quê
E que devo ter algo a dizer
O que me fode é esta asneirada entre os dentes
A calma que o raio do yoga deve trazer
não saber porque mostro isto tudo
Mas ainda assim, supondo a tua perfeição
Ser então o teu amante , anos sessenta-setenta
E, um agora depois
Em que as putas se afeiçoam-se a deuses ex machina
Fico à espera como me mandaram
Um agora, e um depois
Rimavas comigo num verso branco
Em que tudo soava a delírio
E era Prometeu que gemia,
Em Outubro sublimava um hino ao caos
Aproximando-se a verdade pela alcatifa ultramarina,
A pés de veludo azul,
Ameaçou foder tudo o que se mexesse
De volta à fresta que o deitou cá para dentro
Da mente de um americano
Transgressor da estética do código da estrada
Algures mais acima, junto à nuca
Num musical crescente em altura e nós
À praia desse beijo de maçã
Nessa mesma noite submergida
Em prelúdio fino
4.
Afogado no mármore branco de uma circunspecção de rotina
Às paredes roxas dum dorso sublime
Dirige-se ao centro para arder
Na essência unho-roedora
De um cavalo a vapor
Urdida electricamente sobre os telhados
Pelos corpos em chamas
Súbita e invalidamente ostentada
A clavículas de sabonete
Silabação turva d’ absoluto,
Na variação ininterrupta de uma cidade fantasma
Vasculhada no faro engripado duma puta dos subúrbios
Na rosa seca que colhe entre as pernas
“E talvez...
um campo de papoilas”, adiante
a esta vontade de ser mundo
Talvez chame os trovões a permanecer idênticos
num-não-é-medo é o que quer que possa significar
a estátua de Neptuno,
E talvez a noite nos embale
fremida de irrestrições
e o vagido percorra tectonicamente
as entranhas do teu sopro
Talvez corra a ver
os corpos mutilados na praça
Talvez as paredes se fundam no nosso ver dopamínico
e a casa voe na porção escumante dos teus suspiros
Talvez me entendas, talvez não fique para saber
e caia de novo, de costas largas, tão aí, à mão de colher
e prefira a faixa ao vivo,
suspeitando da almofada, em escalpelações surreais
Talvez porque debaixo do córtex cresceu
uma estepe com mais olhos do que barriga
e dois espaços floridos entrelaçando-nos as mãos
No rumor das sombras
No arranhão da minha nascida
Que mais parece uma cintilação escorregadia
Nas parábolas absurdas da minha capitania
Numa trituração pulmonar
Que mais parece um manifesto d‘ondas engalanadas
Numa solidão de margem,
Nas entrelinhas para lá do poema,
À estrada de molas coloridas, ao balancé da máquina de costura- automóvel, que me trouxe directamente aqui,
Ao trampolim surreal duma trova pós - pós – punk
Que mais parece um testemunho sob tortura...
5.
O problema sou eu
Eu, só eu
que me iludo
És tu, só tu
que me anseias
lunarmente
É ele, só ele que se vem nas dunas
Somos nós, só nós
que desaprendemos o caminho
Vós, sobretudos esfíngicos
São eles, só eles e um abismo d’entremins
aos gritos
É uma ideia de espera.
Aluvião psicanalítico
1.
Encontra-se confortavelmente
De cabeça baixa
prenhe de estética
japonesa
sonho filmado
fotograma almado
pai de partida para o Porto
ajuste de contas aportado
imortalidade da boca para fora
vulnerabilidade intransigente
cartas na mesa
urgência analítico-vidente
aura social volúvel
libertinagem grave
perigo respiratório
estrada florestal
decepada como a serpente
a golpe de espada
suposição fatal
imortalidade pecaminosa
renascimento da ferrugem
cabeça gatiforme
dorsado réptil
silibação grotesca
manápulas de poeta
romantismo a talho de foice
martelo imperial
combustão estrelada
compensação
frustrada
cantilena de colher
demência original
expectativa
aplauso
expectativa
loucura
expectativa
morte
expectativa
lua de Saturno
familiar
queda ao mar
água engolida
afogamento eminente
poético
hiperbólico
delírio, inacabado
incapaz
devastação
talvez
novidade aérea inconsciente
rima ausente, recusa audaz
jorro desengonçado
valsa trôpega
papel de parede
simetria de pauta
2.
Candelabro fundeado
essência ilumino-retráctil
Madrepérola contadora de histórias
Invasão surpreendida entre bocejos
Ininterrupção sustida a custo
Segredo cifrado
pela raiz, como a fonte
Convidado a discorrer imelodicamente
Prosápia de incandescer violinos
Avidez sonora trauteante de abismos
Vontade salubre de esvair bolhas
Olhar plácido intransigente
Ocaso flutuante-adormecente
Lamento volúvel ensimesmado
Grasnar electromecânico
Escultura de silhueta esguia
Egoretininte
Pulsão poética
Segunda vaga sombria
Neo agoiro
Descanso diurno
Gazeta ordinária
Às apalpadelas
Trapézio sem rede
Colapso trigonométrico
Descrição difícil
Dias estranhos
Metamorfose
Festim de abelhas
Planeidade d’alcachofras
Conto berrado
Crepúsculo porcelano
Sortido d’ ósculos
Veneração ruidosa
Senhoras de branco
machos de saias
Filigrana pontífice
Geração dromedária
Cosmicidade engessada
Abstracção podre
Fermentação espírita
Atomismo etéreo
Mónada sinfónica
Transposição aparente
Calçada indisposta
Refluxo intransponível
Trejeitos defensivos
Ruína pleonásmica
Desenlace inextenso
Ideário inconsistente
Congregação silenciosa
Resistência passiva
Confissão frívola
Amputação benevolente
Engajamento corante
Camaleonar esplendoroso
Toalha ao sol
Traineira de berço
Alvéloa periódica
Cirandação desvã
Personificação malévola
Antropofagia salutar
Virilidade cadafálsica
Roedura aftosa
Derrocada onâmica
Sementeira vulcânica
Desabrochar cavernoso
Adjectivação primeva
Colheita tardia
Melopeia ociosa
Outro dia...
Vagar ambulatório
1.
Entre o tempo e a sua liquidação
atempada,
Entre a reverberação flácida de instantes
E outra forma de passar à história,
Entre o nosso linguajar senil
E esta vigência ambulatória
Que nos toma pelas mãos,
Entre a escotilha translúcida
E o que se adivinha dos passos,
Entre metal e forja
Poema e psiquismo,
Entre circunvoluções e tabaco
Entre empinações de sondas anguladas
E verticalidades lúbricas,
Entre o céu de lá e este lugar alto
esbaforido mental,
Entre pés acelerantes
E passeios corridos,
Entre semáforos e mendicência
Esmalte e palitos de pinho
Bigodes fartos e palatos boçais,
Entre o cilindramento a sós
E a sucessividade alternada de presenças,
Entre caos e confusão
Noite e dia,
Entre a altacostura terráquea
E um punhado de divagações atlânticas,
Entre pão e fermentações alciónicas
Entre gritos encenados
E unidade estilhaçada
Entre escritos estratosfeéricos
E convulsões abstractas,
Entre as mãos
E o tempo levado a sentir
2.
A formulação simples
sobre os malmequeres ensandecidos
A vagidão que parece que tenho
em comum com o jardim da estrela
O peso que carrego
em périplo espacial
como uma solução d’ enxofre
vertida à tarde em serviços de chá
A bailarina de braços partidos
ao rangerange cordato da melodia encaixotada
A chama de agoras engomados
ansiando o nunca mais é
A rarefacção lírica
dum divórcio em branco
3.
!Oh, sombria divagação
Lucubração paralítica?
!Oh, quem espero
O turbilhão que o veste?
!Oh, tontada aero literária
Inquisição materna,
ver aquático?
!Oh, enfim a origem
Caminho diamantino,
estarrecimento de génio?
!Oh, poção tóxico-ambrosina,
Olimpo contrafeito?
!Oh, máquina de decidir tinos
Destino de musa?
4.
Onde foi a noite das pálpebras duras
é agora a demência
polaridade sináptica
têmporas desengolfadas a vapor!
Por que deserto te abres?
Porque fenda me consentes
d’agora em diante?
Pela meia fibrosa que te trepa pernas acima
ao debrum sarapintado onde equilibras
os cotos de porcelana?,
Pelo tocar-te só
e sentir-me o reflexo desses dedos?,
Pela exalação espelhada com que te esbato
à média luz de encontro a Platão,
elipticorectangularmente enfaixada
nas persianas?,
Pelo que não me impede de correr por aí
calibrado de insónias e gritos,
e de te apertar transparecida
nesse atentar-sobretudo-contra-tudo
o que permanece desse lado,
colapso sobre colapso?,
No estertor mediúnico
da fábula infame
que conservas debaixo das unhas
como um mote emprestado?:
Abaixo! a rede celular elástica,
A protoestrutura medular,
O vertido químico de sombras diurnas
professadas desde o abismo
em contagem estelar,
Os ecos sumarentos de uma polvilhação calcária
como um canto voraz e cristalizante,
A persuasão colérica das cores
como uma segregação perene
desabrochada paradoxalmente
de mãos hirtas aos céus,
A fuga vendada sobre um só gume
endemoninhado, como o húmus
recoberto de folhas secas,
O silêncio chumbado
que te amordaça sobre a tez lívida,
E o ventre, a golpes de pulso,
A fúria de transpirar ruas
a toque de caixa
no sopro da memória,
antes que o céu fosse só tecto,
Não neste mar mas no refluxo secreto
das nascentes,
No grasnar rouco da tarde
de quando setembro já só havia
em melancolia e suspiro,
Num rosto forrado de noite,
No que apetece cantar de breve
vagamente isolado, beatífico
de par em par,
vulcanizado de flores
Veloz, grave, degenerado
Pomar aéreo,
Onde todas as manhãs são procuradas
pelas dunas membradas,
No frenesi vivo de um braço de areia
agitado por milagre
assim, por que sim
sentido, impregnado, guiado
de cadência verborrenta
Sobre tudo, assim
pelo ter que ser
fulgor liquefeito
convulsão de girassóis
por mais um dia, invejoso
da criança que nunca viu o mar
e da pressa que a leva,
Pelo corredor fluído do Bus
por culpa destes tropeções quase meus
e por mais um dia de profundo tédio
morto num instante,
acordado nu, cego, surdo, absorto algures
invadido de novo,
Ao cume pueril
chovido de mins,
Nas pernas esguias
que te enrolam o dorso,
Na poeira astrológica
que te atiro aos olhos
Por nova inalação de margem
4.
Tremiam as mãos, inchavam os pés
na chatice do caminho
Proliferavam as feras, delizavam as lâminas
consensualmente ensonadas
Numa seiva de moléculas deitada de costas
escorrendo palavras aos pares
Lá de cima ao tombos
de volta aos braços esguios, às auto-estradas
ao meu coração berrado de borboletas
Queriam o mundo e queriam-no então
amavam o fundo e tudo
vomitavam entranhas, colhiam as flores
atrás do pano que sobe ao primeiro acto
à corda que os dependura
como a um decote de opereta
ao último acto libertador
Queriam falar de ti mas as línguas entaramelavam-se
e atrás delas a boca infernal engolia toda a merda
atrás dela, eram dezasseis horas no purgatório
e quatro minutos volvidos
eram os lençóis duma prisão Líbia
5.
Quem avançará comigo na escuridão
com quantos filhos conta agora a noite
vindos dos bosques e dos corações das crisálidas,
das cordilheiras postas a nu, das guardas vãs,
das quedas abruptas, dos mistérios de um tipo que tocava flauta
d’alguém importante
de uma nascente caótica, das vagas ou por elas
com o desprezo do que se eleva e desfaz na areia
Descalço e despido de rosto
numa precisão anamnésica de vir
de sempre, saudosa do desperdício alvo dos dias
Desarmado, aparentemente razoável
como as cores florescidas a despropósito
Só.
6.
Então, vem ver os dentes novos da avó
Vem, não nos deixes
A sós com o que fizemos de nós
Vem, não fiques à beira
A ver-nos passar
Como quem não quer a coisa quieta
Podes dançar, beijá-la a correr
E embarcar,
Vem, esquecer-te de mim
Connosco à ilharga
Enrola-me lá nisso
Atiça-nos a porra do lume
Corre daqui para fora
Ao labirinto
De tudo sonhado
Sobre tudo
Desgraçadamente iludido
Vem
7.
Aqui o limbo,
Além a serpente de alças equinócias.
Aqui o que jaze,
Além o que foge à dor, conformado.
Aqui o entusiasmo,
Além o vazio.
Aqui e além,
o silêncio das feras,
a harmonia do universo
Aqui a parte,
Além a ideia do todo,
o tempo das histórias a diesel
a resistência das violetas,
tempo de gritos e amor travestido...
Aqui o delírio,
Além, e depois dele
A suspeita de mais nada.
2º Dto da paranóia
1.
Os sacanas riem-se de mim
que não sei a quantas ando,
parece que sou perito em não saber
onde ficou a minha outra vida,
para que serve a poesia do meu neto,
por onde entro para casa
qual a chave que abre a portinhola do correio
em que esquerda fica o outro coração
o que estou a beber ou
onde ficou o meu poder de policiar ruas
Os sacanas riem-se da merda do velho
que conta o dinheiro em paus
dividido entre os cafés do bairro e os cafés da aldeia
nuns e outros, pela mesma poção
a mesma treta alardeada
Os sacanas andam lá pelo interior a encavar as velhas
e depois deitam-nas ao rio:
– isto há gente para tudo;
parece que se puseram na mulher do Pianço
– uma corja de bandalhos...
Riem-se da caixa de cartão que te serve de mala
das golas surro-abastadas dessa tua miséria tola
dos dentes pousados na mesa do café snack bar
qualquer coisa a branco num toldo,
da perdição de todos os dias
2.
Pedi-te uma daquelas coisas que andam pelo céu,
trouxeste-me uma pistola desmunida
e o dever de dispará-la a matar.
Hoje sou como tu, um velho fumador de ópio
deslindado-ocioso
Que perscruta o mundo daqui
num gorjeio almado sobre as serras,
levado em braços à última morada
chorado e esquecido num mergulho de rio
no delírio que o busca
dentre as coisas do mundo
em exalações de aguarela
Que berra o teu nome à toa
e perverte a ordem do tempo
na placidez seráfica das feras,
Que vasculha dentro de ti
às apalpadelas de mim
e engendra esta forma de ficar só
3.
E logo que a manhã o chamou da larga espera de um dia que era afinal
o último
O coitado subiu a bordo e accionou o unicórnio alado estacado junto
ao leme
E quando as filhas do tédio – Rotina e Solidão –, o agarraram pelos
colarinhos
Deixou para trás um ai e embarcou só numa ideia louca de
intemporalidade
Apertou o sobretudo até cima, erguendo-lhe a gola em riste
Passou a mão pela cabeça e vaporizou-se no fumo azul do seu último
cigarro,
Abandonando o poema num amplexo entre margens
dobrou a esquina e começou o delírio.
Mitopoema
1.
Deixava-se escrever nua da cintura para os lados
Escusado será dizer
Que o amor tudo vencia
Que havia encostas de desenvoltura
Deixadas a correr
Que o seu avançar se fizera lento
Que estava Eu e a Ausência trémula de mim
Miticamente fecundada,
Os raios que me amadureceram,
O ânimo que me agarrou pelos braços
A ladainha relentada num labirinto de espigas
Sulcado aos passos interditos de um anseio de alucinar luas,
A iminência nocturna de sempre partir.
2.
Luz à face do abismo
Palavras e tempo
Condenadas ao ser vivente
Paixão inclemente
Carne e gordura
As águas e o andar sobre elas
Um raio que parte
E um oceano que divide
Houve por que guardar o paraíso
E criar o rapaz,
Para que a terra frutificasse
E a obra soubesse renascer,
Por que escrever
E assumir a culpa, confessar
A loucura de haver alguma coisa
O livro escancarado
Num gritar de socorro
Que os poetas conhecem
Por dentro
3.
A origem revelada
Cosmologicamente
Num ponto desdobrado em muitos
A explosão das estrelas
A essência absolutamente ferida
Vertida d’instantes
4.
Conto-te ó Tempo como tudo se passou:
À frente e primeiro que tudo seguia o Caos, e dele não havia sombra parecença ou pensar.
Por cima resfolegava a Noite e as suas convulsões eram consteladas
Medonha crescia a noite e o querer possuí-la
trazia pela mão essa raça ferida d’absoluto,
arrastando em seu nome as asas, como um testemunho ensandecido.
Depois, quando tudo já podia nada parecer e a confusão ganhava flor
sucederam-se as imagens como crias, multiplicadas sob as ordens pouco claras do engenheiro celestial,
Ascendiam às montanhas inspiradas de vento
E respirar devia-se, sonhar também,
Mas o Caos já se amava ou dizia-se perdido entre flores e espuma,
E havia alguma coisa em torno do principio, escaqueirado em dois murmúrios,
Havia um que sofria de Amor e ao Caos obcecava
um tal que se dizia possível, recorrendo a um principio
menos usual de supra-realidade
Havia outro que não se incomodava de habitar alguns romances franceses,
E trazia a cara de quem vive da colheita das censuras, pois as mãos encontrei um tudo nada mascarradas de fuligem de um género ansioso metaviolador.
A dificuldade passava pelo processo contra o Tempo
que parecia escutar também ele o canto algodoado de Morfeu
embora encolhesse os ombros ritmadamente como que a dizer:
– Não compreendo patavina...
A expressão mostrava no entanto tratar-se de algo importante
ou então, mentiam bem as sacristas escondidas atrás dos caniçais no seu recreio noctívago,
de seios emboscados no turbilhão que troca as agulhas do sono.
Os poetas ficavam por lá esquecidos
e a palavra sofria no lugar do abismo
a harmonia vencia o amor pelo cansaço
cindindo a totalidade em pares infindos
a Vida seguia enfim ao seu termo etéreo,
De elmo coruscante e lança em vez de braço
sábado, 25 de agosto de 2007
Delirius tremens (excerto)
O verão acabou
1
O verão acabou,
Esperamos só que o dia morra
no pátio interior,
Que beije Cristina na boca
pela primeira vez
e se prometa de amor sem fim
pesado no céu de uma outra coisa
na leveza de coisa nenhuma
Que brinque mais com as palavras
e nos traga notícias do espaço
O verão acabou,
Pode ler-se no caderno de José
Havia fogo por todo lado...
Do Meu mundo pequeno
Auscultei a enormidade do Teu...
O verão acabou,
O adeus vem com batatas e molho de soja
o mote aborrece
porque sim
O verão acabou,
A quinquagenária canta com as janelas escancaradas
a rapariga chora o destino, ajoelhada no passeio
deseja nunca ter nascido
a dor que é de amor, o amor com-dor
E nada se explica onde nada é explicitamente
explicável
Pssst, silêncio, SILÊNCIO aí... Ó jovens... vai-se cantar o faaado!
O verão acabou,
Pessoa ficou por casar os heterónimos
à beira Tejo
na glória dos dias cinzentos
O sol fora raptado do heliocentro num carro à prova de raios
virtualmente colonizado
A modernidade é já uma oportunidade única
e um sucesso de vendas
O verão acabou,
Um mau augúrio abriu mão do silêncio
e irrompeu fatalmente
p’la noite e em segredo
O verão acabou...
2
Nesta hora, o areal foge ao sopé da falésia
semi preciosamente incrustado na planta dos meus pés
O séquito metal urgente fica bem por aqui,
onde se escutam os estranhos compassos e o queixume perde o norte
Somos proibidos de entrar
Nesta hora, que nunca abandonámos,
De sair ou ficar
mas passar por ela como o arado pela terra
D’ iniciar qualquer coisa, infimamente
no voo para Berlim oriental
Seguir o personagem poético no seu quotidiano mitológico,
saído para comprar tabaco, embora isso lhe continue a custar a vida
Nesta hora, de luar transviado
onde os amantes perdem o fio à meada numa eminência noctívaga
e são um para o outro, gratos a Deus porque têm corpo
pernas, bocas abertas à mão, e cabeças para perder
Nesta hora, amanhecida por nós acima, duma vertigem abaixo
estilhaçados em setecentos pedaços
«dei-me ao trabalho de os contar»
Nesta hora, que serve perfeitamente a essência parasitária
a carne amontoa-se nas mesas de exumação,
e já não há tempo para os mortos
Nesta hora, que não lembra ao diabo
é impossível perder tempo
Nesta hora, que é de sempre
primeira e derradeira,
Merecemos ficar sós.
Ditirambo surreal
1
Três pancadas concretas na madeira da porta
Avisam duas ou mais ilhas desertas
De que o mar está repleto de garrafas náufragas;
– Sim, pode ser isso, um café e uma garrafa náufraga para mim,
Traga-me também um cinzeiro equatorial, e já agora a conta,
Que maçada,... mudando de assunto,
Tenho a vida perdida e o dia inteiro para gastar
Três pancadas concretas na madeira da porta
As torres são avisadas da ameaça fatal dos bispos negros
Mais belas as flores e os matizes que as pariram
Às três pancadas,
Trocamos fagulhas e nós nos corações
Que até para ser mau é preciso amar
Ser por aí no local prescrito, decidir
Quem és tu?
Partindo do princípio de que és alguma coisa
Sou quem pergunta:
Quem sou?
Perguntaste e eu respondi
Quem é:
sou, eu?
Três pancadas concretas na madeira da porta
Não serei nenhuma delas, mas o abismo que entretece as três
2
Sou eu, podes vir sem receio,
Acercar-me pela praia mais próxima desse anseio
Passa as lezírias, os arrozais, bate a estepe fingida
No teu ver caleidoscópio,
Corre com a selvajaria daí para fora,
Esquece os dentes brancos, as peles morenas
As conquistas dos pioneiros, e todas as convenções actuais,
Ascende do sopé da mesa de pinho
Observa o castelo desmoronado,
Passa os museus de mármore
Não ligues às cordilheiras engalanadas nem aos mercados negros,
Passa as praças caiadas,
Corta caminho pela profundidade sibilante dos oceanos,
Repassa as margens silenciosas, os vales d’ insónias
A multidão ilustrada, neo-qualquer-coisa
Passa Cesariny com as suas receitas de brenhas calcárias,
As latitudes semeadas minuciosamente
Microscopicamente e macroscopicamente falando
Por dentro e de fora
Num modo de ubiquidade desconexa,
Passa lavado em duas águas
Pelo meu canto de virar esquinas
E o meu fulgor de arrancar olhos
Ao longe, passa o pomar paciente
A quadratura d’encostas desenoveladas,
Não hesites,
Corta as amarras, esquece o lastro,
Retesa os maxilares e deixa-te arrastar para cima,
Chegado,
Toma o primeiro autocarro para a Baixa
Mantendo olhar colado ao chão,
Evita o contacto
E sai no Outono,
Deixa-te ficar assim quieto até que te perguntem pela senha
Responde:
«Não sei...»
Marca as reticências com Três pancadas concretas na madeira da porta
Depois vem,
Deita-te sobre os vitrais garridos,
Conta a até cem e multiplica tudo
pela terça parte da minha idade
Vem, como um cavalo louco, na boleia onomatopaica
vvvvvvvvvvvvvvvvvvvvvvvoooooooooooooooooooaaaaaaaaaaaaaa
Aspergido em metáforas gasosas,
Vem, dobra a rua e,
vvvvvvvuuuuummmm,
Passa por mim como se estivesse parado
vvvvveeeeemmmm e,
zzzzzaaaaasssss, em contramão...
chhhhhhhhhhh, descansa...
Os abutres saberão o que fazer contigo.
2
Três mil vezes bateu o coração
trinta mil pedras calçadas a sessenta mil pés cada,
O sol nas costas do calceteiro, e a inspiração laboral
trinta anos depois, mil novecentos e setenta e sete anos antes,
Atrasamo-nos como sempre, pleonasmicamente
com as mãos enroladas nas algibeiras
Nós, três epopeias, escritas
três feras famintas, instintos de presa e a destreza predadora,
Eu e os meus planos de fuga,
meio oito, duas vezes uma oitava
Sobre tudo, hiperventilante
à espreita pela fechadura da Alma-
cadente–sibilante
éterea–degelada–éolica–funda
metafísica–vitérea–gestante–alcalina
reticente–pontual–eterna–natural–esguia
presciente–trágica–vertical–grave–aquática
corrosiva–desoculta–aluvial–coruscante
brunida–cabriolante–ciciada–cúpida
cúmplice–ferida–só–culpada
pervigil–acrobata–perdida
olha para aqui... somos nós
o primeiro natal... Aqui com
terrível vício faquir, a dor (...)
tinhas acabado de morrer. Ah...
sou eu e a colecção de olhares
indiscretos. Lembras-te ou não?
despedida do Verão(...) isto aqui é
baptizado. Aquele é o teu primeiro
aqui são as mãos e a rua que sobe
nem saída nem fim(...) Aqui sou eu
teu almado (...) sequioso suplício(...)
3
Do outro lado, sobrevêm rumores...
Ifigénia surpreende a melancolia dos últimos dias
Faz um pacto mortal, no estuário do tempo,
São duas caras plácidas, biliões de suspiros aluviais
Histórias vivas de outros dias, a antiguidade de sempre
Angústias espelhadas e coágulos
Do outro lado, não muito longe daqui
As coisas afiguram-se bastante parecidas
N’ ausência total de matéria e na presença maciça da luz
Os leões lambem as patas antes que o sangue coalhe
E dão-se graças ao senhor
Pelos punhais que aqui são de enorme valor
Provindo as ruas dos seus loucos,
Chove copiosamente pelos cadernos pautados
Porque a chuva faz falta
Para lavar as patas dos leões
E escrever é preciso para ser no mundo
Do outro lado, conta-se a história de um vago nocturno
Que descansava em si um nada integral
Um poema mal escrito, uma voz mal dita
Do outro lado, estão os reis de lado nenhum
Em vala comum
Os corações esgatanhados em contra-senso citrino
Pomar a pomar,
A osga dona e senhora do pequeno jardim
Acenando à multidão, uma vez por mês,
O avesso notado em cada esquina
Delírio libertário,
O brilho das estrelas ao cuidado dos guardas nocturnos
Até que os rendam bem cedo
A manhã de jornais do dia
E rajadas ocas,
A sabedoria de vento meridiano
A saber a tinta de impressão
Do outro lado, o escuro, o muro, a dose fatal de ilusão,
Os prédios mar adentro
Os metalúrgicos e os seus sindicatos
Do outro lado, há por que tudo cresce e anseia,
Por que esperar o regresso
E queimar os últimos cartuchos numa salva ocre ao céu
Há por que ir a jogo.
4
No claustro de fronte basculante
Estrelas particularmente sensíveis
Assumem a dianteira
Do hemisfério esquerdo do frio,
A cidade toda zarpa alto mar
Os sonhos sucumbem se não forem cridos
A morfina embarca em doses industriais
Aos portos de abrigo,
As primeiras palavras do dia
Sopram desafios aos transeuntes invisíveis
É preciso reconstruir a cabeça inteira
Peça por peça
Estudar bem os manuais das cabeças...
- Mas professor, a vida não se ensina
Isto é a vida, isto aqui –
Num leilão de asas para o cérebro;
Quanto vale esta alma doente, ouço uma convalescença,
Duas convalescenças,
Duas, duas uma, duas duas, duas três,
Vendida
A alma e a dor que não se pega.
Então e para a vida
Meus senhores, quanto julgam que vale o que não se ensina?
Oiço dois anos, uma década, quinhentos anos,
Mil cristos à lapela
Oiço um magote de coisas irrequietas
«Vivo do meu trabalho»
Oiço dois mil lamentos
Dois mil lamentos uma, dois mil lamentos duas,
Dois mil lamentos... três,
Vendido ao pobre diabo do metropolitano
Por dois mil passos sonâmbulos
Doze andares sem paredes ou atrito
Dois mil beijos galvanizados
Por um milhão de abismos particulares
E este dia de sorte.
Então e esta peça única da relojoaria moderna
Saint Cronos de Zurique
Vejo um braço no ar mas... não percebo o que diz...
Trezentos vestidos vermelhos e respectivas rodas Oitocentistas?!
Não... novecentos entretantos indefinidos,
Mil e quinhentas notas de mil reis
E um autógrafo de D. Sebastião!
Vendido à Senhora Musa procuradora de afins.
5
Depressa numa paisagem em câmara lenta
os trópicos ficaram algures, debaixo da cama
o sol escreveu poemas vertebrados
noite adentro
De manhã, são o que vagueia pelo corredor
em busca de uma janela larga para fumar.
6
A colecção obstinada de instantes
Viu-se enfim convertida no mata tempo nacional
Dentro duma nuvem de poeira estuante,
Retomada a invisibilidade;
Não me vês a passar as mãos pela nuca,
A exclamar?
Não me ouves gritar;
Ei, ei, ei, ei,ei...
é, é, é, é , é...
O,o,o,o,o,o...
Ei, ei, ei,ei...
A marchar adiante?
Não vislumbras o desejo de trincheira, e a pressa de sair
Por aí, engordar as fileiras
Arrasando esses sacanas, um por um
Matá-los se for pedido.
Não me vês prostrado a teus pés, deitado na erva alta?
Mas porque não me esmaga de uma vez o nosso deus irado,
E não tritura esta dor em pequenos esmigalhos?
Porque guarda em cada irmão o seu Quê de desespero,
O seu quinhão de abismo?
Não me vês a correr sem cabeça
Numa ideia de pernas?,
Sinto-me morto,
Devo ter morrido algures;
A informação parece conservar-se nos buracos negros
Recordo-me do início da queda.
Não me ouviste bater os pés gravemente ao seu compasso?
Levo Alice nos braços
À coca de um lugar para descansar
Que as Alices correm que se desunham
E eu estou velho para estas misturas,
Trago abraçados os primeiros passos
Num frasco de vidro
As lágrimas-poção
Fazem que entre apesar do risco de ser esmagado;
À pequena gigantone
Ofereço os meus serviços de decifração
Trocando de identidade com o pavimento
Tomo todo o tipo de porcarias de fazer corar;
Acolho os passos arrastados dos pequenos delinquentes
As patas caninas, o jogging neo-pequeno-burguês
A chuva incansável, o orvalho matinal, as mães pelos cabelos
O sangue entornado, escarros e sapatos proxenetas
Os almeidas, as beatas, os cortejos
Alguns cães distraídos, automóveis estacionados em paralelo
As margens calcárias, os atropelos e os roubos por esticão,
Esboços de giz, zonas de estacionamento proibido e carris eléctricos
Dia adentro, noite fora,
Aturo companhia muda dos candeeiros de rua,
As inconsequentes manifestações sindicalistas
A mão e a contra mão,
O séquito dos que são a favor e dos que são contra
O embate de uns nos outros, a contradição, os assegurados,
As masculinizadas, as tipas sobredotadas
Os joelhos escalavrados dos ébrios, o rutilo rastejante da lua
A merda dos pombos, os vómitos dos adolescentes
O giro das rotundas e as pontes aéreas,
As esplanadas pulverizadas, os ociosos sentados
As bestas equipadas, as motorizadas estridentes
As velhas rodas de ferro, as botas de couro e as pontas dos saltos,
A gravidade e o atrito, o gelado afeito para cair dos cones
Os restos junto ao caixote do lixo
Animais famintos, inversões de marcha
Os estropiados no seu ofício, o cheiro do medo
Os malucos e os cigarros cravados
A procissão e as solas d’esborrachar pedras
A marcha de urgência, a aglomeração de mirones
Sacos com rodas, passeios vespertinos
Donas de casa frustradas
Guarda rios de férias
O périplo provinciano pelos hospitais da metrópole
O pequeno traficante de expressão aciganada
O propagandista comuna, os amotinados viscerais em bicos de pés
O acordionista nado cego, os voluntariado e o serviço porta a porta
Os peritos em esquemas de impressão,
As mulheres numa travessia turbulenta com o cântaro ao cocuruto
Botas cardadas, poetas de bruços
Os rostos incógnitos dos suicidas
As sombras ambulantes e o arrastar dos crepúsculos
O pavimento embebido nos meus passos
7
A renúncia do corpo observa-me
Da varanda do quinto esquerdo
Estatelado no pavimento
Trocamos alguns olhares estranhos
Acabámos de trocar as perguntas:
Como é daí?
Daqui vamos andando,
Com a rua às costas, é certo, vamos aguentando
Este lugar estava uma lástima
Mas, tenho feito progressos
Consigo lidar os teus demónios
Criei em segredo o meu próprio inferno
Tenho enfim 50 anos para viver
E não paro de morrer
Sabes agora o que é ser rua
Como eu o que é ser homem
Daqui tu és quem me olha
Pelas tampas de esgoto
O que me responde sempre que inquiro a rua
De como é ser chão depois de ter passado por ele.
A compreensão que fazes de mim
Sou eu que ta sopro
Do alto deste poder de soprar
Não sabes conversar...
Sei que se pudesses pensavas em mim,
Sei também que para não pensar
Trocaste de lugar...
8
Deixa-me pensar, por ti
O que posso fazer?, Como?
É possível saber como?
E o que são as coisas?
Sei que já soube bem melhor...
O que são os cinzeiros e as secretárias
São para o que servem...
Mas para que sirvo eu?
A minha cabeça... onde...?
Não cabe, por onde passou já o corpo,
Serve a rua asfalticamente
Neste espasmo d’ amar as ruas,
Apesar de tudo
Deixa-me a verdade
E o dever de me converter
Em mim
9
Porque me olhas assim
de braço caído,
balançando
no anseio alcoólico do servente de pedreiro
próximo da hora do almoço
Porque não tens tempo para mim
amo-te assim
como quem perdeu o tempo
só, no útero da eternidade,
à espera de deixar o casulo humano
em torvelinho atemático
Porque danças uma cintura de fogo
a minha alma deixa a terra
esquecida do seu peso
Porque emparedas
entre deuses e titãs
a nova cruzada
e o meu mar por inteirar
Porque acossas a nouvelle vague
ao seu leito de morte
assistes a coisas como
eu, só comigo, ao vivo
e a morte de Deus em directo
numa rua terrorista
Porque a guerra é isto
e repórter algum poderá cobri-la
ou dissudir-me da luta
Porque sou, interrogação
indomável, eterna saudade
de tudo,
esburacado semântico
Porque esta fome voraz
é o meu único sustento
e nada mais resta ao desejo
senão lamentar
a insaciável busca febril
das linhas com que me coso
nesta arte de possuir ausências
Porque a saudade é
de sempre em sempre
o timoneiro da viajem
que guia o navio dos tolos
de regresso à terra
Porque a alegria invadiu os corações
e a viagem valeu-me a perdição
d’um beijo de espelho
e estas palavras acorridas à boca
em turbilhão intangível
Porque o meu adeus foi para sempre
demorei uma vida nos teus braços
perdi todos os comboios,
e o olhar, pelas estações
colhido em cachos sumarentos
Porque me esqueci de mim
9
Aquela perna que dá duas voltas à terra
afluída de um clamor lácteo
espontâneo, circular
ao centro duma ilha chamada a arder
farta de viver no poema
Aquele que arrasou este jardim
que colheu as flores
e envelheceu na esperança de não morrer
só, incolor
Aquele, não podia olhar
e viu o que não podia ver
cego fusco
pelas histórias de amores fatais
colhidas na flor da idade,
pelo olhar macerado duma mãe convulsiva
Não, chorar não sossega aquele que possuíste
sem futuro
ao centro da cidade
que te viu nua, mãe
ainda o desejo gritava
Não, não, tu prendeste-te sem razão
ainda a sombra brincava
o vento entre os ramos
e um muro caiado
fazia a cenas ao portão
Não, ainda não respirava sem ajuda
e a ajuda chegou a tempo
absorvida por dentro
descalabro demencial,
inchando de fúria as mãos dos poetas
esses técnicos qualificados
no melhor uso da solidão
Não, aquele que te ama não sabe morrer
em silêncio
cair, sem esbracejo
um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove dedos esticados
teima por mais pancada
nesse dom de resistir
peleja trôpego mas ciente
génio enclausurado na sua insanidade
de modo que, tudo se encaixa
passionalmente
no que possui o amor
como a um antibiótico
mal-contra-indicado
Não, não sabe senão cair
verão abaixo,
rosnar para a mão que o alimenta
ambiciosamente,
voltar as costas pálidas
ao próprio instinto de punhal,
deslizar a alma no gume afiado
do tempo,
a vida fatiar
rebolando na imundície
d’ atmosfera laminada,
chafurdar no choro
da infância
de novo, recesso de abrigo
Não, de novo a trincheira e um caderno em branco
o desprezo do jornal, com pompa e circunstância
sensacional, versado
de novo,
os corredores que conspiram
contra os vidros
abrindo mão das flores
e do céu começado a chover,
silenciadas, talvez para sempre
as salas dos doentes
Não, nada sobrevive, de novo
a sala vazia
numa ideia de espera
aguarda-se a jogada da morte
regateando o futuro a jogar
à sorte como os caracteres
lançados aos homens
Não, não é a morte que me chama
mas a parte lilás desta chama
ainda por deflagrar
10
Canta-se a alegria de morrer, tão devagar
Que me aborrece fazê-lo
Sem ajuda de um técnico especializado
Na paralisia facial dos correctores de seguros
Na barba de três dias do jovem qualquer coisa de sucesso
Aborrece-me de morte
Esta sala de visitas
Tenho mau morrer,
E dois dias para melhorar
De regresso ao jardim
Não volto a tentar
Orientar o ver pelas estrelas
Preciso só de um sítio para ficar,
Donde me fites, pequena sabedoria,
Do vento sacrificial desta velha colina
Sem dificuldades de maior
11
A senhora da cama trinta e sete
É casada e tem dois filhos
Que a visitam diariamente
São calados mas educados
O mais velho dá ares de melancolia
O mais novo é bem parecido...
Ela lá mantém a sanidade
Por mais um dia
A minha moeda pesa na dose de heroína
Que esses gajos tomam ao deitar
«Cavalo, cavalo, O meu reino pelo cavalo»
«Cavalo, cavalo, a minha vida ao desenfreio
Cavalo, anseio a forma pura do teu relinchar
Pelo descaminho
Que a besta tem bom coração
Quando não repugna já
Os seus modos bestiais
11
Pesa o cinzeiro sobre a bíblia
A garrafa de vidro
A água da torneira
O pião raiado de coisas
Para escrever
Um camaleão letrado
À mesa,
A secretária escarranchada
No chão de cortiça
Um bloco de betão
Visto por dentro
A relação intima
As coisas
Capazes de se relacionar
Assim
Entre dedos
Tudo
Sobretudo palavras derramadas
D’ impulsos electricoimagéticos
Cristais liquidos
Idas ao cinema
Raparigas complicadas
Vogais de plateia,
São maus feitios
Peles oleosas
E sou eu que te digo
Deixa o jorro correr
Para onde te levam as pernas
Deixa a noite renascer
Donde se houveram as perdas,
Não recues
É um boneco pornográfico
Que nasce o desejo nas crianças
É pá...
Uma questão filosófica
Do género, o segredo está na massa,
Deixa o sol rugir na bombazina castanha
Não tenhas medo de enlouquecer
Se te obrigo
Mereces que te obriguem.
1
O verão acabou,
Esperamos só que o dia morra
no pátio interior,
Que beije Cristina na boca
pela primeira vez
e se prometa de amor sem fim
pesado no céu de uma outra coisa
na leveza de coisa nenhuma
Que brinque mais com as palavras
e nos traga notícias do espaço
O verão acabou,
Pode ler-se no caderno de José
Havia fogo por todo lado...
Do Meu mundo pequeno
Auscultei a enormidade do Teu...
O verão acabou,
O adeus vem com batatas e molho de soja
o mote aborrece
porque sim
O verão acabou,
A quinquagenária canta com as janelas escancaradas
a rapariga chora o destino, ajoelhada no passeio
deseja nunca ter nascido
a dor que é de amor, o amor com-dor
E nada se explica onde nada é explicitamente
explicável
Pssst, silêncio, SILÊNCIO aí... Ó jovens... vai-se cantar o faaado!
O verão acabou,
Pessoa ficou por casar os heterónimos
à beira Tejo
na glória dos dias cinzentos
O sol fora raptado do heliocentro num carro à prova de raios
virtualmente colonizado
A modernidade é já uma oportunidade única
e um sucesso de vendas
O verão acabou,
Um mau augúrio abriu mão do silêncio
e irrompeu fatalmente
p’la noite e em segredo
O verão acabou...
2
Nesta hora, o areal foge ao sopé da falésia
semi preciosamente incrustado na planta dos meus pés
O séquito metal urgente fica bem por aqui,
onde se escutam os estranhos compassos e o queixume perde o norte
Somos proibidos de entrar
Nesta hora, que nunca abandonámos,
De sair ou ficar
mas passar por ela como o arado pela terra
D’ iniciar qualquer coisa, infimamente
no voo para Berlim oriental
Seguir o personagem poético no seu quotidiano mitológico,
saído para comprar tabaco, embora isso lhe continue a custar a vida
Nesta hora, de luar transviado
onde os amantes perdem o fio à meada numa eminência noctívaga
e são um para o outro, gratos a Deus porque têm corpo
pernas, bocas abertas à mão, e cabeças para perder
Nesta hora, amanhecida por nós acima, duma vertigem abaixo
estilhaçados em setecentos pedaços
«dei-me ao trabalho de os contar»
Nesta hora, que serve perfeitamente a essência parasitária
a carne amontoa-se nas mesas de exumação,
e já não há tempo para os mortos
Nesta hora, que não lembra ao diabo
é impossível perder tempo
Nesta hora, que é de sempre
primeira e derradeira,
Merecemos ficar sós.
Ditirambo surreal
1
Três pancadas concretas na madeira da porta
Avisam duas ou mais ilhas desertas
De que o mar está repleto de garrafas náufragas;
– Sim, pode ser isso, um café e uma garrafa náufraga para mim,
Traga-me também um cinzeiro equatorial, e já agora a conta,
Que maçada,... mudando de assunto,
Tenho a vida perdida e o dia inteiro para gastar
Três pancadas concretas na madeira da porta
As torres são avisadas da ameaça fatal dos bispos negros
Mais belas as flores e os matizes que as pariram
Às três pancadas,
Trocamos fagulhas e nós nos corações
Que até para ser mau é preciso amar
Ser por aí no local prescrito, decidir
Quem és tu?
Partindo do princípio de que és alguma coisa
Sou quem pergunta:
Quem sou?
Perguntaste e eu respondi
Quem é:
sou, eu?
Três pancadas concretas na madeira da porta
Não serei nenhuma delas, mas o abismo que entretece as três
2
Sou eu, podes vir sem receio,
Acercar-me pela praia mais próxima desse anseio
Passa as lezírias, os arrozais, bate a estepe fingida
No teu ver caleidoscópio,
Corre com a selvajaria daí para fora,
Esquece os dentes brancos, as peles morenas
As conquistas dos pioneiros, e todas as convenções actuais,
Ascende do sopé da mesa de pinho
Observa o castelo desmoronado,
Passa os museus de mármore
Não ligues às cordilheiras engalanadas nem aos mercados negros,
Passa as praças caiadas,
Corta caminho pela profundidade sibilante dos oceanos,
Repassa as margens silenciosas, os vales d’ insónias
A multidão ilustrada, neo-qualquer-coisa
Passa Cesariny com as suas receitas de brenhas calcárias,
As latitudes semeadas minuciosamente
Microscopicamente e macroscopicamente falando
Por dentro e de fora
Num modo de ubiquidade desconexa,
Passa lavado em duas águas
Pelo meu canto de virar esquinas
E o meu fulgor de arrancar olhos
Ao longe, passa o pomar paciente
A quadratura d’encostas desenoveladas,
Não hesites,
Corta as amarras, esquece o lastro,
Retesa os maxilares e deixa-te arrastar para cima,
Chegado,
Toma o primeiro autocarro para a Baixa
Mantendo olhar colado ao chão,
Evita o contacto
E sai no Outono,
Deixa-te ficar assim quieto até que te perguntem pela senha
Responde:
«Não sei...»
Marca as reticências com Três pancadas concretas na madeira da porta
Depois vem,
Deita-te sobre os vitrais garridos,
Conta a até cem e multiplica tudo
pela terça parte da minha idade
Vem, como um cavalo louco, na boleia onomatopaica
vvvvvvvvvvvvvvvvvvvvvvvoooooooooooooooooooaaaaaaaaaaaaaa
Aspergido em metáforas gasosas,
Vem, dobra a rua e,
vvvvvvvuuuuummmm,
Passa por mim como se estivesse parado
vvvvveeeeemmmm e,
zzzzzaaaaasssss, em contramão...
chhhhhhhhhhh, descansa...
Os abutres saberão o que fazer contigo.
2
Três mil vezes bateu o coração
trinta mil pedras calçadas a sessenta mil pés cada,
O sol nas costas do calceteiro, e a inspiração laboral
trinta anos depois, mil novecentos e setenta e sete anos antes,
Atrasamo-nos como sempre, pleonasmicamente
com as mãos enroladas nas algibeiras
Nós, três epopeias, escritas
três feras famintas, instintos de presa e a destreza predadora,
Eu e os meus planos de fuga,
meio oito, duas vezes uma oitava
Sobre tudo, hiperventilante
à espreita pela fechadura da Alma-
cadente–sibilante
éterea–degelada–éolica–funda
metafísica–vitérea–gestante–alcalina
reticente–pontual–eterna–natural–esguia
presciente–trágica–vertical–grave–aquática
corrosiva–desoculta–aluvial–coruscante
brunida–cabriolante–ciciada–cúpida
cúmplice–ferida–só–culpada
pervigil–acrobata–perdida
olha para aqui... somos nós
o primeiro natal... Aqui com
terrível vício faquir, a dor (...)
tinhas acabado de morrer. Ah...
sou eu e a colecção de olhares
indiscretos. Lembras-te ou não?
despedida do Verão(...) isto aqui é
baptizado. Aquele é o teu primeiro
aqui são as mãos e a rua que sobe
nem saída nem fim(...) Aqui sou eu
teu almado (...) sequioso suplício(...)
3
Do outro lado, sobrevêm rumores...
Ifigénia surpreende a melancolia dos últimos dias
Faz um pacto mortal, no estuário do tempo,
São duas caras plácidas, biliões de suspiros aluviais
Histórias vivas de outros dias, a antiguidade de sempre
Angústias espelhadas e coágulos
Do outro lado, não muito longe daqui
As coisas afiguram-se bastante parecidas
N’ ausência total de matéria e na presença maciça da luz
Os leões lambem as patas antes que o sangue coalhe
E dão-se graças ao senhor
Pelos punhais que aqui são de enorme valor
Provindo as ruas dos seus loucos,
Chove copiosamente pelos cadernos pautados
Porque a chuva faz falta
Para lavar as patas dos leões
E escrever é preciso para ser no mundo
Do outro lado, conta-se a história de um vago nocturno
Que descansava em si um nada integral
Um poema mal escrito, uma voz mal dita
Do outro lado, estão os reis de lado nenhum
Em vala comum
Os corações esgatanhados em contra-senso citrino
Pomar a pomar,
A osga dona e senhora do pequeno jardim
Acenando à multidão, uma vez por mês,
O avesso notado em cada esquina
Delírio libertário,
O brilho das estrelas ao cuidado dos guardas nocturnos
Até que os rendam bem cedo
A manhã de jornais do dia
E rajadas ocas,
A sabedoria de vento meridiano
A saber a tinta de impressão
Do outro lado, o escuro, o muro, a dose fatal de ilusão,
Os prédios mar adentro
Os metalúrgicos e os seus sindicatos
Do outro lado, há por que tudo cresce e anseia,
Por que esperar o regresso
E queimar os últimos cartuchos numa salva ocre ao céu
Há por que ir a jogo.
4
No claustro de fronte basculante
Estrelas particularmente sensíveis
Assumem a dianteira
Do hemisfério esquerdo do frio,
A cidade toda zarpa alto mar
Os sonhos sucumbem se não forem cridos
A morfina embarca em doses industriais
Aos portos de abrigo,
As primeiras palavras do dia
Sopram desafios aos transeuntes invisíveis
É preciso reconstruir a cabeça inteira
Peça por peça
Estudar bem os manuais das cabeças...
- Mas professor, a vida não se ensina
Isto é a vida, isto aqui –
Num leilão de asas para o cérebro;
Quanto vale esta alma doente, ouço uma convalescença,
Duas convalescenças,
Duas, duas uma, duas duas, duas três,
Vendida
A alma e a dor que não se pega.
Então e para a vida
Meus senhores, quanto julgam que vale o que não se ensina?
Oiço dois anos, uma década, quinhentos anos,
Mil cristos à lapela
Oiço um magote de coisas irrequietas
«Vivo do meu trabalho»
Oiço dois mil lamentos
Dois mil lamentos uma, dois mil lamentos duas,
Dois mil lamentos... três,
Vendido ao pobre diabo do metropolitano
Por dois mil passos sonâmbulos
Doze andares sem paredes ou atrito
Dois mil beijos galvanizados
Por um milhão de abismos particulares
E este dia de sorte.
Então e esta peça única da relojoaria moderna
Saint Cronos de Zurique
Vejo um braço no ar mas... não percebo o que diz...
Trezentos vestidos vermelhos e respectivas rodas Oitocentistas?!
Não... novecentos entretantos indefinidos,
Mil e quinhentas notas de mil reis
E um autógrafo de D. Sebastião!
Vendido à Senhora Musa procuradora de afins.
5
Depressa numa paisagem em câmara lenta
os trópicos ficaram algures, debaixo da cama
o sol escreveu poemas vertebrados
noite adentro
De manhã, são o que vagueia pelo corredor
em busca de uma janela larga para fumar.
6
A colecção obstinada de instantes
Viu-se enfim convertida no mata tempo nacional
Dentro duma nuvem de poeira estuante,
Retomada a invisibilidade;
Não me vês a passar as mãos pela nuca,
A exclamar?
Não me ouves gritar;
Ei, ei, ei, ei,ei...
é, é, é, é , é...
O,o,o,o,o,o...
Ei, ei, ei,ei...
A marchar adiante?
Não vislumbras o desejo de trincheira, e a pressa de sair
Por aí, engordar as fileiras
Arrasando esses sacanas, um por um
Matá-los se for pedido.
Não me vês prostrado a teus pés, deitado na erva alta?
Mas porque não me esmaga de uma vez o nosso deus irado,
E não tritura esta dor em pequenos esmigalhos?
Porque guarda em cada irmão o seu Quê de desespero,
O seu quinhão de abismo?
Não me vês a correr sem cabeça
Numa ideia de pernas?,
Sinto-me morto,
Devo ter morrido algures;
A informação parece conservar-se nos buracos negros
Recordo-me do início da queda.
Não me ouviste bater os pés gravemente ao seu compasso?
Levo Alice nos braços
À coca de um lugar para descansar
Que as Alices correm que se desunham
E eu estou velho para estas misturas,
Trago abraçados os primeiros passos
Num frasco de vidro
As lágrimas-poção
Fazem que entre apesar do risco de ser esmagado;
À pequena gigantone
Ofereço os meus serviços de decifração
Trocando de identidade com o pavimento
Tomo todo o tipo de porcarias de fazer corar;
Acolho os passos arrastados dos pequenos delinquentes
As patas caninas, o jogging neo-pequeno-burguês
A chuva incansável, o orvalho matinal, as mães pelos cabelos
O sangue entornado, escarros e sapatos proxenetas
Os almeidas, as beatas, os cortejos
Alguns cães distraídos, automóveis estacionados em paralelo
As margens calcárias, os atropelos e os roubos por esticão,
Esboços de giz, zonas de estacionamento proibido e carris eléctricos
Dia adentro, noite fora,
Aturo companhia muda dos candeeiros de rua,
As inconsequentes manifestações sindicalistas
A mão e a contra mão,
O séquito dos que são a favor e dos que são contra
O embate de uns nos outros, a contradição, os assegurados,
As masculinizadas, as tipas sobredotadas
Os joelhos escalavrados dos ébrios, o rutilo rastejante da lua
A merda dos pombos, os vómitos dos adolescentes
O giro das rotundas e as pontes aéreas,
As esplanadas pulverizadas, os ociosos sentados
As bestas equipadas, as motorizadas estridentes
As velhas rodas de ferro, as botas de couro e as pontas dos saltos,
A gravidade e o atrito, o gelado afeito para cair dos cones
Os restos junto ao caixote do lixo
Animais famintos, inversões de marcha
Os estropiados no seu ofício, o cheiro do medo
Os malucos e os cigarros cravados
A procissão e as solas d’esborrachar pedras
A marcha de urgência, a aglomeração de mirones
Sacos com rodas, passeios vespertinos
Donas de casa frustradas
Guarda rios de férias
O périplo provinciano pelos hospitais da metrópole
O pequeno traficante de expressão aciganada
O propagandista comuna, os amotinados viscerais em bicos de pés
O acordionista nado cego, os voluntariado e o serviço porta a porta
Os peritos em esquemas de impressão,
As mulheres numa travessia turbulenta com o cântaro ao cocuruto
Botas cardadas, poetas de bruços
Os rostos incógnitos dos suicidas
As sombras ambulantes e o arrastar dos crepúsculos
O pavimento embebido nos meus passos
7
A renúncia do corpo observa-me
Da varanda do quinto esquerdo
Estatelado no pavimento
Trocamos alguns olhares estranhos
Acabámos de trocar as perguntas:
Como é daí?
Daqui vamos andando,
Com a rua às costas, é certo, vamos aguentando
Este lugar estava uma lástima
Mas, tenho feito progressos
Consigo lidar os teus demónios
Criei em segredo o meu próprio inferno
Tenho enfim 50 anos para viver
E não paro de morrer
Sabes agora o que é ser rua
Como eu o que é ser homem
Daqui tu és quem me olha
Pelas tampas de esgoto
O que me responde sempre que inquiro a rua
De como é ser chão depois de ter passado por ele.
A compreensão que fazes de mim
Sou eu que ta sopro
Do alto deste poder de soprar
Não sabes conversar...
Sei que se pudesses pensavas em mim,
Sei também que para não pensar
Trocaste de lugar...
8
Deixa-me pensar, por ti
O que posso fazer?, Como?
É possível saber como?
E o que são as coisas?
Sei que já soube bem melhor...
O que são os cinzeiros e as secretárias
São para o que servem...
Mas para que sirvo eu?
A minha cabeça... onde...?
Não cabe, por onde passou já o corpo,
Serve a rua asfalticamente
Neste espasmo d’ amar as ruas,
Apesar de tudo
Deixa-me a verdade
E o dever de me converter
Em mim
9
Porque me olhas assim
de braço caído,
balançando
no anseio alcoólico do servente de pedreiro
próximo da hora do almoço
Porque não tens tempo para mim
amo-te assim
como quem perdeu o tempo
só, no útero da eternidade,
à espera de deixar o casulo humano
em torvelinho atemático
Porque danças uma cintura de fogo
a minha alma deixa a terra
esquecida do seu peso
Porque emparedas
entre deuses e titãs
a nova cruzada
e o meu mar por inteirar
Porque acossas a nouvelle vague
ao seu leito de morte
assistes a coisas como
eu, só comigo, ao vivo
e a morte de Deus em directo
numa rua terrorista
Porque a guerra é isto
e repórter algum poderá cobri-la
ou dissudir-me da luta
Porque sou, interrogação
indomável, eterna saudade
de tudo,
esburacado semântico
Porque esta fome voraz
é o meu único sustento
e nada mais resta ao desejo
senão lamentar
a insaciável busca febril
das linhas com que me coso
nesta arte de possuir ausências
Porque a saudade é
de sempre em sempre
o timoneiro da viajem
que guia o navio dos tolos
de regresso à terra
Porque a alegria invadiu os corações
e a viagem valeu-me a perdição
d’um beijo de espelho
e estas palavras acorridas à boca
em turbilhão intangível
Porque o meu adeus foi para sempre
demorei uma vida nos teus braços
perdi todos os comboios,
e o olhar, pelas estações
colhido em cachos sumarentos
Porque me esqueci de mim
9
Aquela perna que dá duas voltas à terra
afluída de um clamor lácteo
espontâneo, circular
ao centro duma ilha chamada a arder
farta de viver no poema
Aquele que arrasou este jardim
que colheu as flores
e envelheceu na esperança de não morrer
só, incolor
Aquele, não podia olhar
e viu o que não podia ver
cego fusco
pelas histórias de amores fatais
colhidas na flor da idade,
pelo olhar macerado duma mãe convulsiva
Não, chorar não sossega aquele que possuíste
sem futuro
ao centro da cidade
que te viu nua, mãe
ainda o desejo gritava
Não, não, tu prendeste-te sem razão
ainda a sombra brincava
o vento entre os ramos
e um muro caiado
fazia a cenas ao portão
Não, ainda não respirava sem ajuda
e a ajuda chegou a tempo
absorvida por dentro
descalabro demencial,
inchando de fúria as mãos dos poetas
esses técnicos qualificados
no melhor uso da solidão
Não, aquele que te ama não sabe morrer
em silêncio
cair, sem esbracejo
um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove dedos esticados
teima por mais pancada
nesse dom de resistir
peleja trôpego mas ciente
génio enclausurado na sua insanidade
de modo que, tudo se encaixa
passionalmente
no que possui o amor
como a um antibiótico
mal-contra-indicado
Não, não sabe senão cair
verão abaixo,
rosnar para a mão que o alimenta
ambiciosamente,
voltar as costas pálidas
ao próprio instinto de punhal,
deslizar a alma no gume afiado
do tempo,
a vida fatiar
rebolando na imundície
d’ atmosfera laminada,
chafurdar no choro
da infância
de novo, recesso de abrigo
Não, de novo a trincheira e um caderno em branco
o desprezo do jornal, com pompa e circunstância
sensacional, versado
de novo,
os corredores que conspiram
contra os vidros
abrindo mão das flores
e do céu começado a chover,
silenciadas, talvez para sempre
as salas dos doentes
Não, nada sobrevive, de novo
a sala vazia
numa ideia de espera
aguarda-se a jogada da morte
regateando o futuro a jogar
à sorte como os caracteres
lançados aos homens
Não, não é a morte que me chama
mas a parte lilás desta chama
ainda por deflagrar
10
Canta-se a alegria de morrer, tão devagar
Que me aborrece fazê-lo
Sem ajuda de um técnico especializado
Na paralisia facial dos correctores de seguros
Na barba de três dias do jovem qualquer coisa de sucesso
Aborrece-me de morte
Esta sala de visitas
Tenho mau morrer,
E dois dias para melhorar
De regresso ao jardim
Não volto a tentar
Orientar o ver pelas estrelas
Preciso só de um sítio para ficar,
Donde me fites, pequena sabedoria,
Do vento sacrificial desta velha colina
Sem dificuldades de maior
11
A senhora da cama trinta e sete
É casada e tem dois filhos
Que a visitam diariamente
São calados mas educados
O mais velho dá ares de melancolia
O mais novo é bem parecido...
Ela lá mantém a sanidade
Por mais um dia
A minha moeda pesa na dose de heroína
Que esses gajos tomam ao deitar
«Cavalo, cavalo, O meu reino pelo cavalo»
«Cavalo, cavalo, a minha vida ao desenfreio
Cavalo, anseio a forma pura do teu relinchar
Pelo descaminho
Que a besta tem bom coração
Quando não repugna já
Os seus modos bestiais
11
Pesa o cinzeiro sobre a bíblia
A garrafa de vidro
A água da torneira
O pião raiado de coisas
Para escrever
Um camaleão letrado
À mesa,
A secretária escarranchada
No chão de cortiça
Um bloco de betão
Visto por dentro
A relação intima
As coisas
Capazes de se relacionar
Assim
Entre dedos
Tudo
Sobretudo palavras derramadas
D’ impulsos electricoimagéticos
Cristais liquidos
Idas ao cinema
Raparigas complicadas
Vogais de plateia,
São maus feitios
Peles oleosas
E sou eu que te digo
Deixa o jorro correr
Para onde te levam as pernas
Deixa a noite renascer
Donde se houveram as perdas,
Não recues
É um boneco pornográfico
Que nasce o desejo nas crianças
É pá...
Uma questão filosófica
Do género, o segredo está na massa,
Deixa o sol rugir na bombazina castanha
Não tenhas medo de enlouquecer
Se te obrigo
Mereces que te obriguem.
Subscrever:
Mensagens (Atom)