sábado, 25 de agosto de 2007

Delirius tremens (excerto)

O verão acabou

1

O verão acabou,
Esperamos só que o dia morra
no pátio interior,
Que beije Cristina na boca
pela primeira vez
e se prometa de amor sem fim
pesado no céu de uma outra coisa
na leveza de coisa nenhuma
Que brinque mais com as palavras
e nos traga notícias do espaço
O verão acabou,
Pode ler-se no caderno de José
Havia fogo por todo lado...
Do Meu mundo pequeno
Auscultei a enormidade do Teu...
O verão acabou,
O adeus vem com batatas e molho de soja
o mote aborrece
porque sim
O verão acabou,
A quinquagenária canta com as janelas escancaradas
a rapariga chora o destino, ajoelhada no passeio
deseja nunca ter nascido
a dor que é de amor, o amor com-dor
E nada se explica onde nada é explicitamente
explicável
Pssst, silêncio, SILÊNCIO aí... Ó jovens... vai-se cantar o faaado!
O verão acabou,
Pessoa ficou por casar os heterónimos
à beira Tejo
na glória dos dias cinzentos
O sol fora raptado do heliocentro num carro à prova de raios
virtualmente colonizado
A modernidade é já uma oportunidade única
e um sucesso de vendas
O verão acabou,
Um mau augúrio abriu mão do silêncio
e irrompeu fatalmente
p’la noite e em segredo
O verão acabou...

2

Nesta hora, o areal foge ao sopé da falésia
semi preciosamente incrustado na planta dos meus pés
O séquito metal urgente fica bem por aqui,
onde se escutam os estranhos compassos e o queixume perde o norte
Somos proibidos de entrar
Nesta hora, que nunca abandonámos,
De sair ou ficar
mas passar por ela como o arado pela terra
D’ iniciar qualquer coisa, infimamente
no voo para Berlim oriental
Seguir o personagem poético no seu quotidiano mitológico,
saído para comprar tabaco, embora isso lhe continue a custar a vida
Nesta hora, de luar transviado
onde os amantes perdem o fio à meada numa eminência noctívaga
e são um para o outro, gratos a Deus porque têm corpo
pernas, bocas abertas à mão, e cabeças para perder
Nesta hora, amanhecida por nós acima, duma vertigem abaixo
estilhaçados em setecentos pedaços
«dei-me ao trabalho de os contar»
Nesta hora, que serve perfeitamente a essência parasitária
a carne amontoa-se nas mesas de exumação,
e já não há tempo para os mortos
Nesta hora, que não lembra ao diabo
é impossível perder tempo
Nesta hora, que é de sempre
primeira e derradeira,
Merecemos ficar sós.




Ditirambo surreal

1

Três pancadas concretas na madeira da porta
Avisam duas ou mais ilhas desertas
De que o mar está repleto de garrafas náufragas;
– Sim, pode ser isso, um café e uma garrafa náufraga para mim,
Traga-me também um cinzeiro equatorial, e já agora a conta,
Que maçada,... mudando de assunto,
Tenho a vida perdida e o dia inteiro para gastar

Três pancadas concretas na madeira da porta
As torres são avisadas da ameaça fatal dos bispos negros
Mais belas as flores e os matizes que as pariram
Às três pancadas,
Trocamos fagulhas e nós nos corações
Que até para ser mau é preciso amar
Ser por aí no local prescrito, decidir
Quem és tu?
Partindo do princípio de que és alguma coisa
Sou quem pergunta:
Quem sou?
Perguntaste e eu respondi
Quem é:
sou, eu?

Três pancadas concretas na madeira da porta
Não serei nenhuma delas, mas o abismo que entretece as três


2

Sou eu, podes vir sem receio,
Acercar-me pela praia mais próxima desse anseio
Passa as lezírias, os arrozais, bate a estepe fingida
No teu ver caleidoscópio,
Corre com a selvajaria daí para fora,
Esquece os dentes brancos, as peles morenas
As conquistas dos pioneiros, e todas as convenções actuais,
Ascende do sopé da mesa de pinho
Observa o castelo desmoronado,
Passa os museus de mármore
Não ligues às cordilheiras engalanadas nem aos mercados negros,
Passa as praças caiadas,
Corta caminho pela profundidade sibilante dos oceanos,
Repassa as margens silenciosas, os vales d’ insónias
A multidão ilustrada, neo-qualquer-coisa
Passa Cesariny com as suas receitas de brenhas calcárias,
As latitudes semeadas minuciosamente
Microscopicamente e macroscopicamente falando
Por dentro e de fora
Num modo de ubiquidade desconexa,
Passa lavado em duas águas
Pelo meu canto de virar esquinas
E o meu fulgor de arrancar olhos
Ao longe, passa o pomar paciente
A quadratura d’encostas desenoveladas,
Não hesites,
Corta as amarras, esquece o lastro,
Retesa os maxilares e deixa-te arrastar para cima,
Chegado,
Toma o primeiro autocarro para a Baixa
Mantendo olhar colado ao chão,
Evita o contacto
E sai no Outono,
Deixa-te ficar assim quieto até que te perguntem pela senha
Responde:
«Não sei...»
Marca as reticências com Três pancadas concretas na madeira da porta
Depois vem,
Deita-te sobre os vitrais garridos,
Conta a até cem e multiplica tudo
pela terça parte da minha idade
Vem, como um cavalo louco, na boleia onomatopaica
vvvvvvvvvvvvvvvvvvvvvvvoooooooooooooooooooaaaaaaaaaaaaaa
Aspergido em metáforas gasosas,
Vem, dobra a rua e,
vvvvvvvuuuuummmm,
Passa por mim como se estivesse parado
vvvvveeeeemmmm e,
zzzzzaaaaasssss, em contramão...
chhhhhhhhhhh, descansa...
Os abutres saberão o que fazer contigo.

2
Três mil vezes bateu o coração
trinta mil pedras calçadas a sessenta mil pés cada,
O sol nas costas do calceteiro, e a inspiração laboral
trinta anos depois, mil novecentos e setenta e sete anos antes,
Atrasamo-nos como sempre, pleonasmicamente
com as mãos enroladas nas algibeiras
Nós, três epopeias, escritas
três feras famintas, instintos de presa e a destreza predadora,
Eu e os meus planos de fuga,
meio oito, duas vezes uma oitava
Sobre tudo, hiperventilante
à espreita pela fechadura da Alma-



cadente–sibilante
éterea–degelada–éolica–funda
metafísica–vitérea–gestante–alcalina
reticente–pontual–eterna–natural–esguia
presciente–trágica–vertical–grave–aquática
corrosiva–desoculta–aluvial–coruscante
brunida–cabriolante–ciciada–cúpida
cúmplice–ferida–só–culpada
pervigil–acrobata–perdida
olha para aqui... somos nós
o primeiro natal... Aqui com
terrível vício faquir, a dor (...)
tinhas acabado de morrer. Ah...
sou eu e a colecção de olhares
indiscretos. Lembras-te ou não?
despedida do Verão(...) isto aqui é
baptizado. Aquele é o teu primeiro
aqui são as mãos e a rua que sobe
nem saída nem fim(...) Aqui sou eu
teu almado (...) sequioso suplício(...)


3

Do outro lado, sobrevêm rumores...
Ifigénia surpreende a melancolia dos últimos dias
Faz um pacto mortal, no estuário do tempo,
São duas caras plácidas, biliões de suspiros aluviais
Histórias vivas de outros dias, a antiguidade de sempre
Angústias espelhadas e coágulos
Do outro lado, não muito longe daqui
As coisas afiguram-se bastante parecidas
N’ ausência total de matéria e na presença maciça da luz
Os leões lambem as patas antes que o sangue coalhe
E dão-se graças ao senhor
Pelos punhais que aqui são de enorme valor
Provindo as ruas dos seus loucos,
Chove copiosamente pelos cadernos pautados
Porque a chuva faz falta
Para lavar as patas dos leões
E escrever é preciso para ser no mundo
Do outro lado, conta-se a história de um vago nocturno
Que descansava em si um nada integral
Um poema mal escrito, uma voz mal dita
Do outro lado, estão os reis de lado nenhum
Em vala comum
Os corações esgatanhados em contra-senso citrino
Pomar a pomar,
A osga dona e senhora do pequeno jardim
Acenando à multidão, uma vez por mês,
O avesso notado em cada esquina
Delírio libertário,
O brilho das estrelas ao cuidado dos guardas nocturnos
Até que os rendam bem cedo
A manhã de jornais do dia
E rajadas ocas,
A sabedoria de vento meridiano
A saber a tinta de impressão
Do outro lado, o escuro, o muro, a dose fatal de ilusão,
Os prédios mar adentro
Os metalúrgicos e os seus sindicatos
Do outro lado, há por que tudo cresce e anseia,
Por que esperar o regresso
E queimar os últimos cartuchos numa salva ocre ao céu
Há por que ir a jogo.


4

No claustro de fronte basculante
Estrelas particularmente sensíveis
Assumem a dianteira
Do hemisfério esquerdo do frio,
A cidade toda zarpa alto mar
Os sonhos sucumbem se não forem cridos
A morfina embarca em doses industriais
Aos portos de abrigo,
As primeiras palavras do dia
Sopram desafios aos transeuntes invisíveis
É preciso reconstruir a cabeça inteira
Peça por peça
Estudar bem os manuais das cabeças...
- Mas professor, a vida não se ensina
Isto é a vida, isto aqui –
Num leilão de asas para o cérebro;

Quanto vale esta alma doente, ouço uma convalescença,
Duas convalescenças,
Duas, duas uma, duas duas, duas três,
Vendida
A alma e a dor que não se pega.
Então e para a vida
Meus senhores, quanto julgam que vale o que não se ensina?
Oiço dois anos, uma década, quinhentos anos,
Mil cristos à lapela
Oiço um magote de coisas irrequietas
«Vivo do meu trabalho»
Oiço dois mil lamentos
Dois mil lamentos uma, dois mil lamentos duas,
Dois mil lamentos... três,
Vendido ao pobre diabo do metropolitano
Por dois mil passos sonâmbulos
Doze andares sem paredes ou atrito
Dois mil beijos galvanizados
Por um milhão de abismos particulares
E este dia de sorte.
Então e esta peça única da relojoaria moderna
Saint Cronos de Zurique
Vejo um braço no ar mas... não percebo o que diz...
Trezentos vestidos vermelhos e respectivas rodas Oitocentistas?!
Não... novecentos entretantos indefinidos,
Mil e quinhentas notas de mil reis
E um autógrafo de D. Sebastião!
Vendido à Senhora Musa procuradora de afins.

5

Depressa numa paisagem em câmara lenta
os trópicos ficaram algures, debaixo da cama
o sol escreveu poemas vertebrados
noite adentro
De manhã, são o que vagueia pelo corredor
em busca de uma janela larga para fumar.


6

A colecção obstinada de instantes
Viu-se enfim convertida no mata tempo nacional
Dentro duma nuvem de poeira estuante,
Retomada a invisibilidade;

Não me vês a passar as mãos pela nuca,
A exclamar?
Não me ouves gritar;
Ei, ei, ei, ei,ei...
é, é, é, é , é...
O,o,o,o,o,o...
Ei, ei, ei,ei...
A marchar adiante?
Não vislumbras o desejo de trincheira, e a pressa de sair
Por aí, engordar as fileiras
Arrasando esses sacanas, um por um
Matá-los se for pedido.
Não me vês prostrado a teus pés, deitado na erva alta?
Mas porque não me esmaga de uma vez o nosso deus irado,
E não tritura esta dor em pequenos esmigalhos?
Porque guarda em cada irmão o seu Quê de desespero,
O seu quinhão de abismo?
Não me vês a correr sem cabeça
Numa ideia de pernas?,
Sinto-me morto,
Devo ter morrido algures;
A informação parece conservar-se nos buracos negros
Recordo-me do início da queda.
Não me ouviste bater os pés gravemente ao seu compasso?
Levo Alice nos braços
À coca de um lugar para descansar
Que as Alices correm que se desunham
E eu estou velho para estas misturas,
Trago abraçados os primeiros passos
Num frasco de vidro
As lágrimas-poção
Fazem que entre apesar do risco de ser esmagado;
À pequena gigantone
Ofereço os meus serviços de decifração
Trocando de identidade com o pavimento
Tomo todo o tipo de porcarias de fazer corar;
Acolho os passos arrastados dos pequenos delinquentes
As patas caninas, o jogging neo-pequeno-burguês
A chuva incansável, o orvalho matinal, as mães pelos cabelos
O sangue entornado, escarros e sapatos proxenetas
Os almeidas, as beatas, os cortejos
Alguns cães distraídos, automóveis estacionados em paralelo
As margens calcárias, os atropelos e os roubos por esticão,
Esboços de giz, zonas de estacionamento proibido e carris eléctricos
Dia adentro, noite fora,
Aturo companhia muda dos candeeiros de rua,
As inconsequentes manifestações sindicalistas
A mão e a contra mão,
O séquito dos que são a favor e dos que são contra
O embate de uns nos outros, a contradição, os assegurados,
As masculinizadas, as tipas sobredotadas
Os joelhos escalavrados dos ébrios, o rutilo rastejante da lua
A merda dos pombos, os vómitos dos adolescentes
O giro das rotundas e as pontes aéreas,
As esplanadas pulverizadas, os ociosos sentados
As bestas equipadas, as motorizadas estridentes
As velhas rodas de ferro, as botas de couro e as pontas dos saltos,
A gravidade e o atrito, o gelado afeito para cair dos cones
Os restos junto ao caixote do lixo
Animais famintos, inversões de marcha
Os estropiados no seu ofício, o cheiro do medo
Os malucos e os cigarros cravados
A procissão e as solas d’esborrachar pedras
A marcha de urgência, a aglomeração de mirones
Sacos com rodas, passeios vespertinos
Donas de casa frustradas
Guarda rios de férias
O périplo provinciano pelos hospitais da metrópole
O pequeno traficante de expressão aciganada
O propagandista comuna, os amotinados viscerais em bicos de pés
O acordionista nado cego, os voluntariado e o serviço porta a porta
Os peritos em esquemas de impressão,
As mulheres numa travessia turbulenta com o cântaro ao cocuruto
Botas cardadas, poetas de bruços
Os rostos incógnitos dos suicidas
As sombras ambulantes e o arrastar dos crepúsculos
O pavimento embebido nos meus passos

7

A renúncia do corpo observa-me
Da varanda do quinto esquerdo
Estatelado no pavimento
Trocamos alguns olhares estranhos
Acabámos de trocar as perguntas:
Como é daí?
Daqui vamos andando,
Com a rua às costas, é certo, vamos aguentando
Este lugar estava uma lástima
Mas, tenho feito progressos
Consigo lidar os teus demónios
Criei em segredo o meu próprio inferno
Tenho enfim 50 anos para viver
E não paro de morrer
Sabes agora o que é ser rua
Como eu o que é ser homem
Daqui tu és quem me olha
Pelas tampas de esgoto
O que me responde sempre que inquiro a rua
De como é ser chão depois de ter passado por ele.
A compreensão que fazes de mim
Sou eu que ta sopro
Do alto deste poder de soprar
Não sabes conversar...
Sei que se pudesses pensavas em mim,
Sei também que para não pensar
Trocaste de lugar...

8

Deixa-me pensar, por ti
O que posso fazer?, Como?
É possível saber como?
E o que são as coisas?
Sei que já soube bem melhor...
O que são os cinzeiros e as secretárias
São para o que servem...
Mas para que sirvo eu?
A minha cabeça... onde...?
Não cabe, por onde passou já o corpo,
Serve a rua asfalticamente
Neste espasmo d’ amar as ruas,
Apesar de tudo
Deixa-me a verdade
E o dever de me converter
Em mim


9

Porque me olhas assim
de braço caído,
balançando
no anseio alcoólico do servente de pedreiro
próximo da hora do almoço
Porque não tens tempo para mim
amo-te assim
como quem perdeu o tempo
só, no útero da eternidade,
à espera de deixar o casulo humano
em torvelinho atemático
Porque danças uma cintura de fogo
a minha alma deixa a terra
esquecida do seu peso
Porque emparedas
entre deuses e titãs
a nova cruzada
e o meu mar por inteirar
Porque acossas a nouvelle vague
ao seu leito de morte
assistes a coisas como
eu, só comigo, ao vivo
e a morte de Deus em directo
numa rua terrorista
Porque a guerra é isto
e repórter algum poderá cobri-la
ou dissudir-me da luta
Porque sou, interrogação
indomável, eterna saudade
de tudo,
esburacado semântico
Porque esta fome voraz
é o meu único sustento
e nada mais resta ao desejo
senão lamentar
a insaciável busca febril
das linhas com que me coso
nesta arte de possuir ausências
Porque a saudade é
de sempre em sempre
o timoneiro da viajem
que guia o navio dos tolos
de regresso à terra
Porque a alegria invadiu os corações
e a viagem valeu-me a perdição
d’um beijo de espelho
e estas palavras acorridas à boca
em turbilhão intangível
Porque o meu adeus foi para sempre
demorei uma vida nos teus braços
perdi todos os comboios,
e o olhar, pelas estações
colhido em cachos sumarentos
Porque me esqueci de mim

9

Aquela perna que dá duas voltas à terra
afluída de um clamor lácteo
espontâneo, circular
ao centro duma ilha chamada a arder
farta de viver no poema
Aquele que arrasou este jardim
que colheu as flores
e envelheceu na esperança de não morrer
só, incolor
Aquele, não podia olhar
e viu o que não podia ver
cego fusco
pelas histórias de amores fatais
colhidas na flor da idade,
pelo olhar macerado duma mãe convulsiva

Não, chorar não sossega aquele que possuíste
sem futuro
ao centro da cidade
que te viu nua, mãe
ainda o desejo gritava
Não, não, tu prendeste-te sem razão
ainda a sombra brincava
o vento entre os ramos
e um muro caiado
fazia a cenas ao portão
Não, ainda não respirava sem ajuda
e a ajuda chegou a tempo
absorvida por dentro
descalabro demencial,
inchando de fúria as mãos dos poetas
esses técnicos qualificados
no melhor uso da solidão
Não, aquele que te ama não sabe morrer
em silêncio
cair, sem esbracejo
um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove dedos esticados
teima por mais pancada
nesse dom de resistir
peleja trôpego mas ciente
génio enclausurado na sua insanidade
de modo que, tudo se encaixa
passionalmente
no que possui o amor
como a um antibiótico
mal-contra-indicado
Não, não sabe senão cair
verão abaixo,
rosnar para a mão que o alimenta
ambiciosamente,
voltar as costas pálidas
ao próprio instinto de punhal,
deslizar a alma no gume afiado
do tempo,
a vida fatiar
rebolando na imundície
d’ atmosfera laminada,
chafurdar no choro
da infância
de novo, recesso de abrigo
Não, de novo a trincheira e um caderno em branco
o desprezo do jornal, com pompa e circunstância
sensacional, versado
de novo,
os corredores que conspiram
contra os vidros
abrindo mão das flores
e do céu começado a chover,
silenciadas, talvez para sempre
as salas dos doentes
Não, nada sobrevive, de novo
a sala vazia
numa ideia de espera
aguarda-se a jogada da morte
regateando o futuro a jogar
à sorte como os caracteres
lançados aos homens
Não, não é a morte que me chama
mas a parte lilás desta chama
ainda por deflagrar

10

Canta-se a alegria de morrer, tão devagar
Que me aborrece fazê-lo
Sem ajuda de um técnico especializado
Na paralisia facial dos correctores de seguros
Na barba de três dias do jovem qualquer coisa de sucesso
Aborrece-me de morte
Esta sala de visitas
Tenho mau morrer,
E dois dias para melhorar
De regresso ao jardim
Não volto a tentar
Orientar o ver pelas estrelas
Preciso só de um sítio para ficar,
Donde me fites, pequena sabedoria,
Do vento sacrificial desta velha colina
Sem dificuldades de maior

11

A senhora da cama trinta e sete
É casada e tem dois filhos
Que a visitam diariamente
São calados mas educados
O mais velho dá ares de melancolia
O mais novo é bem parecido...


Ela lá mantém a sanidade
Por mais um dia
A minha moeda pesa na dose de heroína
Que esses gajos tomam ao deitar
«Cavalo, cavalo, O meu reino pelo cavalo»
«Cavalo, cavalo, a minha vida ao desenfreio
Cavalo, anseio a forma pura do teu relinchar
Pelo descaminho
Que a besta tem bom coração
Quando não repugna já
Os seus modos bestiais


11

Pesa o cinzeiro sobre a bíblia
A garrafa de vidro
A água da torneira
O pião raiado de coisas
Para escrever
Um camaleão letrado
À mesa,
A secretária escarranchada
No chão de cortiça
Um bloco de betão
Visto por dentro
A relação intima
As coisas
Capazes de se relacionar
Assim
Entre dedos
Tudo
Sobretudo palavras derramadas
D’ impulsos electricoimagéticos
Cristais liquidos
Idas ao cinema
Raparigas complicadas
Vogais de plateia,
São maus feitios
Peles oleosas
E sou eu que te digo
Deixa o jorro correr
Para onde te levam as pernas
Deixa a noite renascer
Donde se houveram as perdas,
Não recues
É um boneco pornográfico
Que nasce o desejo nas crianças
É pá...
Uma questão filosófica
Do género, o segredo está na massa,
Deixa o sol rugir na bombazina castanha
Não tenhas medo de enlouquecer
Se te obrigo
Mereces que te obriguem.