domingo, 23 de dezembro de 2007

Delirius tremens (3ª parte)

3ª parte

Próximo Acto
1.

A cena passa-se, onde o campo de trigo cede o lugar à forma vazia de uma ausência cortante, Entretijiolada
Apresento-me, eis a folha em branco, os meus suspiros almaços, Entremim e eu,
Sei que não sei, apresento-me, eis a espera de quem não sabe porque diabo espera, a resposta que não se faz esperar, Entre mim e eu,
A presença sonhada de quem me escuta.



2.
Carregas a arma e já estou a sonhar, num instante disparas, distingo vultos tresmalhados com o teu nome e identifico-nos em livre trânsito pela realidade, A maluca fala de Percival, Greg voltou a apontar o rosto do motorista do 31 como seu, saímos juntos para comprar um olhos bonitos para a morte, Começo a acreditar que é ele a causa da minha perda de sono, a par dos cafés que bebo, e dos cigarros que fumo, Estou em crer que é tudo uma perda de tempo, que a dificuldade em permanecer neste quarto se deve à tempestade que se aproxima, Não tenho dúvidas de que será imensa, de há muito embrutecida;
Apanhe-se a roupa, calem-se os meninos, esta veio para nos levar Greg, e à maluca que luta com a morte, Os pombos estão como nós e não sabem para onde voar, vai tudo pelos ares, Segura as rédeas, os cavalos que não se esqueçam de voar, só me vem à ideia a chuva nas vidraças no coração de Setembro, a corrida de gotículas no párabrisas, o resto passou, já não é, foi-se com os outros
Desta vez prometo que começo e só páro quando não puder prosseguir, que as palavras virão depois do chá, sou fraco, tão fraco que não me seguro nas pernas, mas na ideia de andar, tão fraco que carrego o mundo às costas como um titanzito de pouca monta que libertará Prometeu num apocalipse entardecida.

3.

Agora, agora, dois agoras e o mesmo depois

Agora, um agora e um depois

Agora, “Eu”
Outrora um relógio que tinha um braço
Com queda para as letras

Agora, capaz de te abrir acima do sol, apeado
Aqui, à minha espera por este rio acima
Herdeiro de uma catásfrofre lusomaritima
Na pulsão de beijar a coisa
Num não, não-te-permito-morrer-já
Mas logo que as maçãs fiquem mais belas
E a força corte a direito a loucura
Fazendo tábua rasa ao tédio

Agora, deixo-te e vou à cata do vento
Ou do segredo que o cospe
Numa sensação de relaxa-me-saber-que-não-sei-o-quê
E que devo ter algo a dizer
O que me fode é esta asneirada entre os dentes
A calma que o raio do yoga deve trazer
não saber porque mostro isto tudo
Mas ainda assim, supondo a tua perfeição
Ser então o teu amante , anos sessenta-setenta

E, um agora depois
Em que as putas se afeiçoam-se a deuses ex machina
Fico à espera como me mandaram


Um agora, e um depois
Rimavas comigo num verso branco
Em que tudo soava a delírio
E era Prometeu que gemia,
Em Outubro sublimava um hino ao caos
Aproximando-se a verdade pela alcatifa ultramarina,
A pés de veludo azul,
Ameaçou foder tudo o que se mexesse
De volta à fresta que o deitou cá para dentro
Da mente de um americano
Transgressor da estética do código da estrada
Algures mais acima, junto à nuca
Num musical crescente em altura e nós
À praia desse beijo de maçã
Nessa mesma noite submergida
Em prelúdio fino


4.

Afogado no mármore branco de uma circunspecção de rotina
Às paredes roxas dum dorso sublime
Dirige-se ao centro para arder
Na essência unho-roedora
De um cavalo a vapor
Urdida electricamente sobre os telhados
Pelos corpos em chamas
Súbita e invalidamente ostentada
A clavículas de sabonete
Silabação turva d’ absoluto,
Na variação ininterrupta de uma cidade fantasma
Vasculhada no faro engripado duma puta dos subúrbios
Na rosa seca que colhe entre as pernas

“E talvez...
um campo de papoilas”, adiante
a esta vontade de ser mundo
Talvez chame os trovões a permanecer idênticos
num-não-é-medo é o que quer que possa significar
a estátua de Neptuno,
E talvez a noite nos embale
fremida de irrestrições
e o vagido percorra tectonicamente
as entranhas do teu sopro
Talvez corra a ver
os corpos mutilados na praça
Talvez as paredes se fundam no nosso ver dopamínico
e a casa voe na porção escumante dos teus suspiros
Talvez me entendas, talvez não fique para saber
e caia de novo, de costas largas, tão aí, à mão de colher
e prefira a faixa ao vivo,
suspeitando da almofada, em escalpelações surreais
Talvez porque debaixo do córtex cresceu
uma estepe com mais olhos do que barriga
e dois espaços floridos entrelaçando-nos as mãos
No rumor das sombras
No arranhão da minha nascida
Que mais parece uma cintilação escorregadia
Nas parábolas absurdas da minha capitania
Numa trituração pulmonar
Que mais parece um manifesto d‘ondas engalanadas
Numa solidão de margem,
Nas entrelinhas para lá do poema,
À estrada de molas coloridas, ao balancé da máquina de costura- automóvel, que me trouxe directamente aqui,
Ao trampolim surreal duma trova pós - pós – punk
Que mais parece um testemunho sob tortura...


5.

O problema sou eu
Eu, só eu
que me iludo
És tu, só tu
que me anseias
lunarmente
É ele, só ele que se vem nas dunas
Somos nós, só nós
que desaprendemos o caminho
Vós, sobretudos esfíngicos
São eles, só eles e um abismo d’entremins
aos gritos
É uma ideia de espera.



Aluvião psicanalítico

1.
Encontra-se confortavelmente
De cabeça baixa
prenhe de estética
japonesa
sonho filmado
fotograma almado
pai de partida para o Porto
ajuste de contas aportado
imortalidade da boca para fora
vulnerabilidade intransigente
cartas na mesa
urgência analítico-vidente
aura social volúvel
libertinagem grave
perigo respiratório
estrada florestal
decepada como a serpente
a golpe de espada
suposição fatal
imortalidade pecaminosa
renascimento da ferrugem
cabeça gatiforme
dorsado réptil
silibação grotesca
manápulas de poeta
romantismo a talho de foice
martelo imperial
combustão estrelada
compensação
frustrada
cantilena de colher
demência original
expectativa
aplauso
expectativa
loucura
expectativa
morte
expectativa
lua de Saturno
familiar
queda ao mar
água engolida
afogamento eminente
poético
hiperbólico
delírio, inacabado
incapaz
devastação
talvez
novidade aérea inconsciente
rima ausente, recusa audaz
jorro desengonçado
valsa trôpega
papel de parede
simetria de pauta


2.
Candelabro fundeado
essência ilumino-retráctil
Madrepérola contadora de histórias
Invasão surpreendida entre bocejos
Ininterrupção sustida a custo
Segredo cifrado
pela raiz, como a fonte
Convidado a discorrer imelodicamente
Prosápia de incandescer violinos
Avidez sonora trauteante de abismos
Vontade salubre de esvair bolhas
Olhar plácido intransigente
Ocaso flutuante-adormecente
Lamento volúvel ensimesmado
Grasnar electromecânico
Escultura de silhueta esguia
Egoretininte
Pulsão poética
Segunda vaga sombria
Neo agoiro
Descanso diurno
Gazeta ordinária
Às apalpadelas
Trapézio sem rede
Colapso trigonométrico
Descrição difícil
Dias estranhos
Metamorfose
Festim de abelhas
Planeidade d’alcachofras
Conto berrado
Crepúsculo porcelano
Sortido d’ ósculos
Veneração ruidosa
Senhoras de branco
machos de saias
Filigrana pontífice
Geração dromedária
Cosmicidade engessada
Abstracção podre
Fermentação espírita
Atomismo etéreo
Mónada sinfónica
Transposição aparente
Calçada indisposta
Refluxo intransponível
Trejeitos defensivos
Ruína pleonásmica
Desenlace inextenso
Ideário inconsistente
Congregação silenciosa
Resistência passiva
Confissão frívola
Amputação benevolente
Engajamento corante
Camaleonar esplendoroso
Toalha ao sol
Traineira de berço
Alvéloa periódica
Cirandação desvã
Personificação malévola
Antropofagia salutar
Virilidade cadafálsica
Roedura aftosa
Derrocada onâmica
Sementeira vulcânica
Desabrochar cavernoso
Adjectivação primeva
Colheita tardia
Melopeia ociosa
Outro dia...




Vagar ambulatório
1.
Entre o tempo e a sua liquidação
atempada,
Entre a reverberação flácida de instantes
E outra forma de passar à história,
Entre o nosso linguajar senil
E esta vigência ambulatória
Que nos toma pelas mãos,
Entre a escotilha translúcida
E o que se adivinha dos passos,
Entre metal e forja
Poema e psiquismo,
Entre circunvoluções e tabaco

Entre empinações de sondas anguladas
E verticalidades lúbricas,
Entre o céu de lá e este lugar alto
esbaforido mental,
Entre pés acelerantes
E passeios corridos,
Entre semáforos e mendicência
Esmalte e palitos de pinho
Bigodes fartos e palatos boçais,
Entre o cilindramento a sós
E a sucessividade alternada de presenças,
Entre caos e confusão
Noite e dia,
Entre a altacostura terráquea
E um punhado de divagações atlânticas,
Entre pão e fermentações alciónicas



Entre gritos encenados
E unidade estilhaçada
Entre escritos estratosfeéricos
E convulsões abstractas,
Entre as mãos
E o tempo levado a sentir

2.

A formulação simples
sobre os malmequeres ensandecidos
A vagidão que parece que tenho
em comum com o jardim da estrela
O peso que carrego
em périplo espacial
como uma solução d’ enxofre
vertida à tarde em serviços de chá
A bailarina de braços partidos
ao rangerange cordato da melodia encaixotada
A chama de agoras engomados
ansiando o nunca mais é
A rarefacção lírica
dum divórcio em branco


3.

!Oh, sombria divagação
Lucubração paralítica?
!Oh, quem espero
O turbilhão que o veste?
!Oh, tontada aero literária
Inquisição materna,
ver aquático?
!Oh, enfim a origem
Caminho diamantino,
estarrecimento de génio?
!Oh, poção tóxico-ambrosina,
Olimpo contrafeito?
!Oh, máquina de decidir tinos
Destino de musa?

4.

Onde foi a noite das pálpebras duras
é agora a demência
polaridade sináptica
têmporas desengolfadas a vapor!
Por que deserto te abres?
Porque fenda me consentes
d’agora em diante?
Pela meia fibrosa que te trepa pernas acima
ao debrum sarapintado onde equilibras
os cotos de porcelana?,
Pelo tocar-te só
e sentir-me o reflexo desses dedos?,
Pela exalação espelhada com que te esbato
à média luz de encontro a Platão,
elipticorectangularmente enfaixada
nas persianas?,
Pelo que não me impede de correr por aí
calibrado de insónias e gritos,
e de te apertar transparecida
nesse atentar-sobretudo-contra-tudo
o que permanece desse lado,
colapso sobre colapso?,
No estertor mediúnico
da fábula infame
que conservas debaixo das unhas
como um mote emprestado?:
Abaixo! a rede celular elástica,
A protoestrutura medular,
O vertido químico de sombras diurnas
professadas desde o abismo
em contagem estelar,
Os ecos sumarentos de uma polvilhação calcária
como um canto voraz e cristalizante,
A persuasão colérica das cores
como uma segregação perene
desabrochada paradoxalmente
de mãos hirtas aos céus,
A fuga vendada sobre um só gume
endemoninhado, como o húmus
recoberto de folhas secas,
O silêncio chumbado
que te amordaça sobre a tez lívida,
E o ventre, a golpes de pulso,
A fúria de transpirar ruas
a toque de caixa
no sopro da memória,
antes que o céu fosse só tecto,
Não neste mar mas no refluxo secreto
das nascentes,
No grasnar rouco da tarde
de quando setembro já só havia
em melancolia e suspiro,
Num rosto forrado de noite,
No que apetece cantar de breve
vagamente isolado, beatífico
de par em par,
vulcanizado de flores
Veloz, grave, degenerado
Pomar aéreo,
Onde todas as manhãs são procuradas
pelas dunas membradas,
No frenesi vivo de um braço de areia
agitado por milagre
assim, por que sim
sentido, impregnado, guiado
de cadência verborrenta
Sobre tudo, assim
pelo ter que ser
fulgor liquefeito
convulsão de girassóis
por mais um dia, invejoso
da criança que nunca viu o mar
e da pressa que a leva,
Pelo corredor fluído do Bus
por culpa destes tropeções quase meus
e por mais um dia de profundo tédio
morto num instante,
acordado nu, cego, surdo, absorto algures
invadido de novo,
Ao cume pueril
chovido de mins,
Nas pernas esguias
que te enrolam o dorso,
Na poeira astrológica
que te atiro aos olhos
Por nova inalação de margem

4.
Tremiam as mãos, inchavam os pés
na chatice do caminho
Proliferavam as feras, delizavam as lâminas
consensualmente ensonadas
Numa seiva de moléculas deitada de costas
escorrendo palavras aos pares
Lá de cima ao tombos
de volta aos braços esguios, às auto-estradas
ao meu coração berrado de borboletas
Queriam o mundo e queriam-no então
amavam o fundo e tudo
vomitavam entranhas, colhiam as flores
atrás do pano que sobe ao primeiro acto
à corda que os dependura
como a um decote de opereta
ao último acto libertador
Queriam falar de ti mas as línguas entaramelavam-se
e atrás delas a boca infernal engolia toda a merda
atrás dela, eram dezasseis horas no purgatório
e quatro minutos volvidos
eram os lençóis duma prisão Líbia

5.

Quem avançará comigo na escuridão
com quantos filhos conta agora a noite
vindos dos bosques e dos corações das crisálidas,
das cordilheiras postas a nu, das guardas vãs,
das quedas abruptas, dos mistérios de um tipo que tocava flauta
d’alguém importante
de uma nascente caótica, das vagas ou por elas
com o desprezo do que se eleva e desfaz na areia
Descalço e despido de rosto
numa precisão anamnésica de vir
de sempre, saudosa do desperdício alvo dos dias
Desarmado, aparentemente razoável
como as cores florescidas a despropósito
Só.


6.

Então, vem ver os dentes novos da avó
Vem, não nos deixes
A sós com o que fizemos de nós
Vem, não fiques à beira
A ver-nos passar
Como quem não quer a coisa quieta
Podes dançar, beijá-la a correr
E embarcar,
Vem, esquecer-te de mim
Connosco à ilharga
Enrola-me lá nisso
Atiça-nos a porra do lume
Corre daqui para fora
Ao labirinto
De tudo sonhado
Sobre tudo
Desgraçadamente iludido
Vem

7.
Aqui o limbo,
Além a serpente de alças equinócias.
Aqui o que jaze,
Além o que foge à dor, conformado.
Aqui o entusiasmo,
Além o vazio.

Aqui e além,
o silêncio das feras,
a harmonia do universo

Aqui a parte,
Além a ideia do todo,
o tempo das histórias a diesel
a resistência das violetas,
tempo de gritos e amor travestido...
Aqui o delírio,
Além, e depois dele
A suspeita de mais nada.



2º Dto da paranóia

1.
Os sacanas riem-se de mim
que não sei a quantas ando,
parece que sou perito em não saber
onde ficou a minha outra vida,
para que serve a poesia do meu neto,
por onde entro para casa
qual a chave que abre a portinhola do correio
em que esquerda fica o outro coração
o que estou a beber ou
onde ficou o meu poder de policiar ruas
Os sacanas riem-se da merda do velho
que conta o dinheiro em paus
dividido entre os cafés do bairro e os cafés da aldeia
nuns e outros, pela mesma poção
a mesma treta alardeada
Os sacanas andam lá pelo interior a encavar as velhas
e depois deitam-nas ao rio:
– isto há gente para tudo;
parece que se puseram na mulher do Pianço
– uma corja de bandalhos...
Riem-se da caixa de cartão que te serve de mala
das golas surro-abastadas dessa tua miséria tola
dos dentes pousados na mesa do café snack bar
qualquer coisa a branco num toldo,
da perdição de todos os dias

2.

Pedi-te uma daquelas coisas que andam pelo céu,
trouxeste-me uma pistola desmunida
e o dever de dispará-la a matar.
Hoje sou como tu, um velho fumador de ópio
deslindado-ocioso
Que perscruta o mundo daqui
num gorjeio almado sobre as serras,
levado em braços à última morada
chorado e esquecido num mergulho de rio
no delírio que o busca
dentre as coisas do mundo
em exalações de aguarela
Que berra o teu nome à toa
e perverte a ordem do tempo
na placidez seráfica das feras,
Que vasculha dentro de ti
às apalpadelas de mim
e engendra esta forma de ficar só

3.

E logo que a manhã o chamou da larga espera de um dia que era afinal
o último
O coitado subiu a bordo e accionou o unicórnio alado estacado junto
ao leme
E quando as filhas do tédio – Rotina e Solidão –, o agarraram pelos
colarinhos
Deixou para trás um ai e embarcou só numa ideia louca de
intemporalidade
Apertou o sobretudo até cima, erguendo-lhe a gola em riste
Passou a mão pela cabeça e vaporizou-se no fumo azul do seu último
cigarro,
Abandonando o poema num amplexo entre margens
dobrou a esquina e começou o delírio.


Mitopoema

1.

Deixava-se escrever nua da cintura para os lados
Escusado será dizer
Que o amor tudo vencia
Que havia encostas de desenvoltura
Deixadas a correr
Que o seu avançar se fizera lento
Que estava Eu e a Ausência trémula de mim
Miticamente fecundada,
Os raios que me amadureceram,
O ânimo que me agarrou pelos braços
A ladainha relentada num labirinto de espigas
Sulcado aos passos interditos de um anseio de alucinar luas,
A iminência nocturna de sempre partir.

2.

Luz à face do abismo
Palavras e tempo
Condenadas ao ser vivente
Paixão inclemente
Carne e gordura
As águas e o andar sobre elas
Um raio que parte
E um oceano que divide
Houve por que guardar o paraíso
E criar o rapaz,
Para que a terra frutificasse
E a obra soubesse renascer,
Por que escrever
E assumir a culpa, confessar
A loucura de haver alguma coisa
O livro escancarado
Num gritar de socorro
Que os poetas conhecem
Por dentro


3.

A origem revelada
Cosmologicamente
Num ponto desdobrado em muitos
A explosão das estrelas
A essência absolutamente ferida
Vertida d’instantes

4.

Conto-te ó Tempo como tudo se passou:

À frente e primeiro que tudo seguia o Caos, e dele não havia sombra parecença ou pensar.
Por cima resfolegava a Noite e as suas convulsões eram consteladas
Medonha crescia a noite e o querer possuí-la
trazia pela mão essa raça ferida d’absoluto,
arrastando em seu nome as asas, como um testemunho ensandecido.
Depois, quando tudo já podia nada parecer e a confusão ganhava flor
sucederam-se as imagens como crias, multiplicadas sob as ordens pouco claras do engenheiro celestial,
Ascendiam às montanhas inspiradas de vento
E respirar devia-se, sonhar também,
Mas o Caos já se amava ou dizia-se perdido entre flores e espuma,
E havia alguma coisa em torno do principio, escaqueirado em dois murmúrios,
Havia um que sofria de Amor e ao Caos obcecava
um tal que se dizia possível, recorrendo a um principio
menos usual de supra-realidade
Havia outro que não se incomodava de habitar alguns romances franceses,
E trazia a cara de quem vive da colheita das censuras, pois as mãos encontrei um tudo nada mascarradas de fuligem de um género ansioso metaviolador.
A dificuldade passava pelo processo contra o Tempo
que parecia escutar também ele o canto algodoado de Morfeu
embora encolhesse os ombros ritmadamente como que a dizer:
– Não compreendo patavina...
A expressão mostrava no entanto tratar-se de algo importante
ou então, mentiam bem as sacristas escondidas atrás dos caniçais no seu recreio noctívago,
de seios emboscados no turbilhão que troca as agulhas do sono.
Os poetas ficavam por lá esquecidos
e a palavra sofria no lugar do abismo
a harmonia vencia o amor pelo cansaço
cindindo a totalidade em pares infindos
a Vida seguia enfim ao seu termo etéreo,
De elmo coruscante e lança em vez de braço

sábado, 25 de agosto de 2007

Delirius tremens (excerto)

O verão acabou

1

O verão acabou,
Esperamos só que o dia morra
no pátio interior,
Que beije Cristina na boca
pela primeira vez
e se prometa de amor sem fim
pesado no céu de uma outra coisa
na leveza de coisa nenhuma
Que brinque mais com as palavras
e nos traga notícias do espaço
O verão acabou,
Pode ler-se no caderno de José
Havia fogo por todo lado...
Do Meu mundo pequeno
Auscultei a enormidade do Teu...
O verão acabou,
O adeus vem com batatas e molho de soja
o mote aborrece
porque sim
O verão acabou,
A quinquagenária canta com as janelas escancaradas
a rapariga chora o destino, ajoelhada no passeio
deseja nunca ter nascido
a dor que é de amor, o amor com-dor
E nada se explica onde nada é explicitamente
explicável
Pssst, silêncio, SILÊNCIO aí... Ó jovens... vai-se cantar o faaado!
O verão acabou,
Pessoa ficou por casar os heterónimos
à beira Tejo
na glória dos dias cinzentos
O sol fora raptado do heliocentro num carro à prova de raios
virtualmente colonizado
A modernidade é já uma oportunidade única
e um sucesso de vendas
O verão acabou,
Um mau augúrio abriu mão do silêncio
e irrompeu fatalmente
p’la noite e em segredo
O verão acabou...

2

Nesta hora, o areal foge ao sopé da falésia
semi preciosamente incrustado na planta dos meus pés
O séquito metal urgente fica bem por aqui,
onde se escutam os estranhos compassos e o queixume perde o norte
Somos proibidos de entrar
Nesta hora, que nunca abandonámos,
De sair ou ficar
mas passar por ela como o arado pela terra
D’ iniciar qualquer coisa, infimamente
no voo para Berlim oriental
Seguir o personagem poético no seu quotidiano mitológico,
saído para comprar tabaco, embora isso lhe continue a custar a vida
Nesta hora, de luar transviado
onde os amantes perdem o fio à meada numa eminência noctívaga
e são um para o outro, gratos a Deus porque têm corpo
pernas, bocas abertas à mão, e cabeças para perder
Nesta hora, amanhecida por nós acima, duma vertigem abaixo
estilhaçados em setecentos pedaços
«dei-me ao trabalho de os contar»
Nesta hora, que serve perfeitamente a essência parasitária
a carne amontoa-se nas mesas de exumação,
e já não há tempo para os mortos
Nesta hora, que não lembra ao diabo
é impossível perder tempo
Nesta hora, que é de sempre
primeira e derradeira,
Merecemos ficar sós.




Ditirambo surreal

1

Três pancadas concretas na madeira da porta
Avisam duas ou mais ilhas desertas
De que o mar está repleto de garrafas náufragas;
– Sim, pode ser isso, um café e uma garrafa náufraga para mim,
Traga-me também um cinzeiro equatorial, e já agora a conta,
Que maçada,... mudando de assunto,
Tenho a vida perdida e o dia inteiro para gastar

Três pancadas concretas na madeira da porta
As torres são avisadas da ameaça fatal dos bispos negros
Mais belas as flores e os matizes que as pariram
Às três pancadas,
Trocamos fagulhas e nós nos corações
Que até para ser mau é preciso amar
Ser por aí no local prescrito, decidir
Quem és tu?
Partindo do princípio de que és alguma coisa
Sou quem pergunta:
Quem sou?
Perguntaste e eu respondi
Quem é:
sou, eu?

Três pancadas concretas na madeira da porta
Não serei nenhuma delas, mas o abismo que entretece as três


2

Sou eu, podes vir sem receio,
Acercar-me pela praia mais próxima desse anseio
Passa as lezírias, os arrozais, bate a estepe fingida
No teu ver caleidoscópio,
Corre com a selvajaria daí para fora,
Esquece os dentes brancos, as peles morenas
As conquistas dos pioneiros, e todas as convenções actuais,
Ascende do sopé da mesa de pinho
Observa o castelo desmoronado,
Passa os museus de mármore
Não ligues às cordilheiras engalanadas nem aos mercados negros,
Passa as praças caiadas,
Corta caminho pela profundidade sibilante dos oceanos,
Repassa as margens silenciosas, os vales d’ insónias
A multidão ilustrada, neo-qualquer-coisa
Passa Cesariny com as suas receitas de brenhas calcárias,
As latitudes semeadas minuciosamente
Microscopicamente e macroscopicamente falando
Por dentro e de fora
Num modo de ubiquidade desconexa,
Passa lavado em duas águas
Pelo meu canto de virar esquinas
E o meu fulgor de arrancar olhos
Ao longe, passa o pomar paciente
A quadratura d’encostas desenoveladas,
Não hesites,
Corta as amarras, esquece o lastro,
Retesa os maxilares e deixa-te arrastar para cima,
Chegado,
Toma o primeiro autocarro para a Baixa
Mantendo olhar colado ao chão,
Evita o contacto
E sai no Outono,
Deixa-te ficar assim quieto até que te perguntem pela senha
Responde:
«Não sei...»
Marca as reticências com Três pancadas concretas na madeira da porta
Depois vem,
Deita-te sobre os vitrais garridos,
Conta a até cem e multiplica tudo
pela terça parte da minha idade
Vem, como um cavalo louco, na boleia onomatopaica
vvvvvvvvvvvvvvvvvvvvvvvoooooooooooooooooooaaaaaaaaaaaaaa
Aspergido em metáforas gasosas,
Vem, dobra a rua e,
vvvvvvvuuuuummmm,
Passa por mim como se estivesse parado
vvvvveeeeemmmm e,
zzzzzaaaaasssss, em contramão...
chhhhhhhhhhh, descansa...
Os abutres saberão o que fazer contigo.

2
Três mil vezes bateu o coração
trinta mil pedras calçadas a sessenta mil pés cada,
O sol nas costas do calceteiro, e a inspiração laboral
trinta anos depois, mil novecentos e setenta e sete anos antes,
Atrasamo-nos como sempre, pleonasmicamente
com as mãos enroladas nas algibeiras
Nós, três epopeias, escritas
três feras famintas, instintos de presa e a destreza predadora,
Eu e os meus planos de fuga,
meio oito, duas vezes uma oitava
Sobre tudo, hiperventilante
à espreita pela fechadura da Alma-



cadente–sibilante
éterea–degelada–éolica–funda
metafísica–vitérea–gestante–alcalina
reticente–pontual–eterna–natural–esguia
presciente–trágica–vertical–grave–aquática
corrosiva–desoculta–aluvial–coruscante
brunida–cabriolante–ciciada–cúpida
cúmplice–ferida–só–culpada
pervigil–acrobata–perdida
olha para aqui... somos nós
o primeiro natal... Aqui com
terrível vício faquir, a dor (...)
tinhas acabado de morrer. Ah...
sou eu e a colecção de olhares
indiscretos. Lembras-te ou não?
despedida do Verão(...) isto aqui é
baptizado. Aquele é o teu primeiro
aqui são as mãos e a rua que sobe
nem saída nem fim(...) Aqui sou eu
teu almado (...) sequioso suplício(...)


3

Do outro lado, sobrevêm rumores...
Ifigénia surpreende a melancolia dos últimos dias
Faz um pacto mortal, no estuário do tempo,
São duas caras plácidas, biliões de suspiros aluviais
Histórias vivas de outros dias, a antiguidade de sempre
Angústias espelhadas e coágulos
Do outro lado, não muito longe daqui
As coisas afiguram-se bastante parecidas
N’ ausência total de matéria e na presença maciça da luz
Os leões lambem as patas antes que o sangue coalhe
E dão-se graças ao senhor
Pelos punhais que aqui são de enorme valor
Provindo as ruas dos seus loucos,
Chove copiosamente pelos cadernos pautados
Porque a chuva faz falta
Para lavar as patas dos leões
E escrever é preciso para ser no mundo
Do outro lado, conta-se a história de um vago nocturno
Que descansava em si um nada integral
Um poema mal escrito, uma voz mal dita
Do outro lado, estão os reis de lado nenhum
Em vala comum
Os corações esgatanhados em contra-senso citrino
Pomar a pomar,
A osga dona e senhora do pequeno jardim
Acenando à multidão, uma vez por mês,
O avesso notado em cada esquina
Delírio libertário,
O brilho das estrelas ao cuidado dos guardas nocturnos
Até que os rendam bem cedo
A manhã de jornais do dia
E rajadas ocas,
A sabedoria de vento meridiano
A saber a tinta de impressão
Do outro lado, o escuro, o muro, a dose fatal de ilusão,
Os prédios mar adentro
Os metalúrgicos e os seus sindicatos
Do outro lado, há por que tudo cresce e anseia,
Por que esperar o regresso
E queimar os últimos cartuchos numa salva ocre ao céu
Há por que ir a jogo.


4

No claustro de fronte basculante
Estrelas particularmente sensíveis
Assumem a dianteira
Do hemisfério esquerdo do frio,
A cidade toda zarpa alto mar
Os sonhos sucumbem se não forem cridos
A morfina embarca em doses industriais
Aos portos de abrigo,
As primeiras palavras do dia
Sopram desafios aos transeuntes invisíveis
É preciso reconstruir a cabeça inteira
Peça por peça
Estudar bem os manuais das cabeças...
- Mas professor, a vida não se ensina
Isto é a vida, isto aqui –
Num leilão de asas para o cérebro;

Quanto vale esta alma doente, ouço uma convalescença,
Duas convalescenças,
Duas, duas uma, duas duas, duas três,
Vendida
A alma e a dor que não se pega.
Então e para a vida
Meus senhores, quanto julgam que vale o que não se ensina?
Oiço dois anos, uma década, quinhentos anos,
Mil cristos à lapela
Oiço um magote de coisas irrequietas
«Vivo do meu trabalho»
Oiço dois mil lamentos
Dois mil lamentos uma, dois mil lamentos duas,
Dois mil lamentos... três,
Vendido ao pobre diabo do metropolitano
Por dois mil passos sonâmbulos
Doze andares sem paredes ou atrito
Dois mil beijos galvanizados
Por um milhão de abismos particulares
E este dia de sorte.
Então e esta peça única da relojoaria moderna
Saint Cronos de Zurique
Vejo um braço no ar mas... não percebo o que diz...
Trezentos vestidos vermelhos e respectivas rodas Oitocentistas?!
Não... novecentos entretantos indefinidos,
Mil e quinhentas notas de mil reis
E um autógrafo de D. Sebastião!
Vendido à Senhora Musa procuradora de afins.

5

Depressa numa paisagem em câmara lenta
os trópicos ficaram algures, debaixo da cama
o sol escreveu poemas vertebrados
noite adentro
De manhã, são o que vagueia pelo corredor
em busca de uma janela larga para fumar.


6

A colecção obstinada de instantes
Viu-se enfim convertida no mata tempo nacional
Dentro duma nuvem de poeira estuante,
Retomada a invisibilidade;

Não me vês a passar as mãos pela nuca,
A exclamar?
Não me ouves gritar;
Ei, ei, ei, ei,ei...
é, é, é, é , é...
O,o,o,o,o,o...
Ei, ei, ei,ei...
A marchar adiante?
Não vislumbras o desejo de trincheira, e a pressa de sair
Por aí, engordar as fileiras
Arrasando esses sacanas, um por um
Matá-los se for pedido.
Não me vês prostrado a teus pés, deitado na erva alta?
Mas porque não me esmaga de uma vez o nosso deus irado,
E não tritura esta dor em pequenos esmigalhos?
Porque guarda em cada irmão o seu Quê de desespero,
O seu quinhão de abismo?
Não me vês a correr sem cabeça
Numa ideia de pernas?,
Sinto-me morto,
Devo ter morrido algures;
A informação parece conservar-se nos buracos negros
Recordo-me do início da queda.
Não me ouviste bater os pés gravemente ao seu compasso?
Levo Alice nos braços
À coca de um lugar para descansar
Que as Alices correm que se desunham
E eu estou velho para estas misturas,
Trago abraçados os primeiros passos
Num frasco de vidro
As lágrimas-poção
Fazem que entre apesar do risco de ser esmagado;
À pequena gigantone
Ofereço os meus serviços de decifração
Trocando de identidade com o pavimento
Tomo todo o tipo de porcarias de fazer corar;
Acolho os passos arrastados dos pequenos delinquentes
As patas caninas, o jogging neo-pequeno-burguês
A chuva incansável, o orvalho matinal, as mães pelos cabelos
O sangue entornado, escarros e sapatos proxenetas
Os almeidas, as beatas, os cortejos
Alguns cães distraídos, automóveis estacionados em paralelo
As margens calcárias, os atropelos e os roubos por esticão,
Esboços de giz, zonas de estacionamento proibido e carris eléctricos
Dia adentro, noite fora,
Aturo companhia muda dos candeeiros de rua,
As inconsequentes manifestações sindicalistas
A mão e a contra mão,
O séquito dos que são a favor e dos que são contra
O embate de uns nos outros, a contradição, os assegurados,
As masculinizadas, as tipas sobredotadas
Os joelhos escalavrados dos ébrios, o rutilo rastejante da lua
A merda dos pombos, os vómitos dos adolescentes
O giro das rotundas e as pontes aéreas,
As esplanadas pulverizadas, os ociosos sentados
As bestas equipadas, as motorizadas estridentes
As velhas rodas de ferro, as botas de couro e as pontas dos saltos,
A gravidade e o atrito, o gelado afeito para cair dos cones
Os restos junto ao caixote do lixo
Animais famintos, inversões de marcha
Os estropiados no seu ofício, o cheiro do medo
Os malucos e os cigarros cravados
A procissão e as solas d’esborrachar pedras
A marcha de urgência, a aglomeração de mirones
Sacos com rodas, passeios vespertinos
Donas de casa frustradas
Guarda rios de férias
O périplo provinciano pelos hospitais da metrópole
O pequeno traficante de expressão aciganada
O propagandista comuna, os amotinados viscerais em bicos de pés
O acordionista nado cego, os voluntariado e o serviço porta a porta
Os peritos em esquemas de impressão,
As mulheres numa travessia turbulenta com o cântaro ao cocuruto
Botas cardadas, poetas de bruços
Os rostos incógnitos dos suicidas
As sombras ambulantes e o arrastar dos crepúsculos
O pavimento embebido nos meus passos

7

A renúncia do corpo observa-me
Da varanda do quinto esquerdo
Estatelado no pavimento
Trocamos alguns olhares estranhos
Acabámos de trocar as perguntas:
Como é daí?
Daqui vamos andando,
Com a rua às costas, é certo, vamos aguentando
Este lugar estava uma lástima
Mas, tenho feito progressos
Consigo lidar os teus demónios
Criei em segredo o meu próprio inferno
Tenho enfim 50 anos para viver
E não paro de morrer
Sabes agora o que é ser rua
Como eu o que é ser homem
Daqui tu és quem me olha
Pelas tampas de esgoto
O que me responde sempre que inquiro a rua
De como é ser chão depois de ter passado por ele.
A compreensão que fazes de mim
Sou eu que ta sopro
Do alto deste poder de soprar
Não sabes conversar...
Sei que se pudesses pensavas em mim,
Sei também que para não pensar
Trocaste de lugar...

8

Deixa-me pensar, por ti
O que posso fazer?, Como?
É possível saber como?
E o que são as coisas?
Sei que já soube bem melhor...
O que são os cinzeiros e as secretárias
São para o que servem...
Mas para que sirvo eu?
A minha cabeça... onde...?
Não cabe, por onde passou já o corpo,
Serve a rua asfalticamente
Neste espasmo d’ amar as ruas,
Apesar de tudo
Deixa-me a verdade
E o dever de me converter
Em mim


9

Porque me olhas assim
de braço caído,
balançando
no anseio alcoólico do servente de pedreiro
próximo da hora do almoço
Porque não tens tempo para mim
amo-te assim
como quem perdeu o tempo
só, no útero da eternidade,
à espera de deixar o casulo humano
em torvelinho atemático
Porque danças uma cintura de fogo
a minha alma deixa a terra
esquecida do seu peso
Porque emparedas
entre deuses e titãs
a nova cruzada
e o meu mar por inteirar
Porque acossas a nouvelle vague
ao seu leito de morte
assistes a coisas como
eu, só comigo, ao vivo
e a morte de Deus em directo
numa rua terrorista
Porque a guerra é isto
e repórter algum poderá cobri-la
ou dissudir-me da luta
Porque sou, interrogação
indomável, eterna saudade
de tudo,
esburacado semântico
Porque esta fome voraz
é o meu único sustento
e nada mais resta ao desejo
senão lamentar
a insaciável busca febril
das linhas com que me coso
nesta arte de possuir ausências
Porque a saudade é
de sempre em sempre
o timoneiro da viajem
que guia o navio dos tolos
de regresso à terra
Porque a alegria invadiu os corações
e a viagem valeu-me a perdição
d’um beijo de espelho
e estas palavras acorridas à boca
em turbilhão intangível
Porque o meu adeus foi para sempre
demorei uma vida nos teus braços
perdi todos os comboios,
e o olhar, pelas estações
colhido em cachos sumarentos
Porque me esqueci de mim

9

Aquela perna que dá duas voltas à terra
afluída de um clamor lácteo
espontâneo, circular
ao centro duma ilha chamada a arder
farta de viver no poema
Aquele que arrasou este jardim
que colheu as flores
e envelheceu na esperança de não morrer
só, incolor
Aquele, não podia olhar
e viu o que não podia ver
cego fusco
pelas histórias de amores fatais
colhidas na flor da idade,
pelo olhar macerado duma mãe convulsiva

Não, chorar não sossega aquele que possuíste
sem futuro
ao centro da cidade
que te viu nua, mãe
ainda o desejo gritava
Não, não, tu prendeste-te sem razão
ainda a sombra brincava
o vento entre os ramos
e um muro caiado
fazia a cenas ao portão
Não, ainda não respirava sem ajuda
e a ajuda chegou a tempo
absorvida por dentro
descalabro demencial,
inchando de fúria as mãos dos poetas
esses técnicos qualificados
no melhor uso da solidão
Não, aquele que te ama não sabe morrer
em silêncio
cair, sem esbracejo
um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove dedos esticados
teima por mais pancada
nesse dom de resistir
peleja trôpego mas ciente
génio enclausurado na sua insanidade
de modo que, tudo se encaixa
passionalmente
no que possui o amor
como a um antibiótico
mal-contra-indicado
Não, não sabe senão cair
verão abaixo,
rosnar para a mão que o alimenta
ambiciosamente,
voltar as costas pálidas
ao próprio instinto de punhal,
deslizar a alma no gume afiado
do tempo,
a vida fatiar
rebolando na imundície
d’ atmosfera laminada,
chafurdar no choro
da infância
de novo, recesso de abrigo
Não, de novo a trincheira e um caderno em branco
o desprezo do jornal, com pompa e circunstância
sensacional, versado
de novo,
os corredores que conspiram
contra os vidros
abrindo mão das flores
e do céu começado a chover,
silenciadas, talvez para sempre
as salas dos doentes
Não, nada sobrevive, de novo
a sala vazia
numa ideia de espera
aguarda-se a jogada da morte
regateando o futuro a jogar
à sorte como os caracteres
lançados aos homens
Não, não é a morte que me chama
mas a parte lilás desta chama
ainda por deflagrar

10

Canta-se a alegria de morrer, tão devagar
Que me aborrece fazê-lo
Sem ajuda de um técnico especializado
Na paralisia facial dos correctores de seguros
Na barba de três dias do jovem qualquer coisa de sucesso
Aborrece-me de morte
Esta sala de visitas
Tenho mau morrer,
E dois dias para melhorar
De regresso ao jardim
Não volto a tentar
Orientar o ver pelas estrelas
Preciso só de um sítio para ficar,
Donde me fites, pequena sabedoria,
Do vento sacrificial desta velha colina
Sem dificuldades de maior

11

A senhora da cama trinta e sete
É casada e tem dois filhos
Que a visitam diariamente
São calados mas educados
O mais velho dá ares de melancolia
O mais novo é bem parecido...


Ela lá mantém a sanidade
Por mais um dia
A minha moeda pesa na dose de heroína
Que esses gajos tomam ao deitar
«Cavalo, cavalo, O meu reino pelo cavalo»
«Cavalo, cavalo, a minha vida ao desenfreio
Cavalo, anseio a forma pura do teu relinchar
Pelo descaminho
Que a besta tem bom coração
Quando não repugna já
Os seus modos bestiais


11

Pesa o cinzeiro sobre a bíblia
A garrafa de vidro
A água da torneira
O pião raiado de coisas
Para escrever
Um camaleão letrado
À mesa,
A secretária escarranchada
No chão de cortiça
Um bloco de betão
Visto por dentro
A relação intima
As coisas
Capazes de se relacionar
Assim
Entre dedos
Tudo
Sobretudo palavras derramadas
D’ impulsos electricoimagéticos
Cristais liquidos
Idas ao cinema
Raparigas complicadas
Vogais de plateia,
São maus feitios
Peles oleosas
E sou eu que te digo
Deixa o jorro correr
Para onde te levam as pernas
Deixa a noite renascer
Donde se houveram as perdas,
Não recues
É um boneco pornográfico
Que nasce o desejo nas crianças
É pá...
Uma questão filosófica
Do género, o segredo está na massa,
Deixa o sol rugir na bombazina castanha
Não tenhas medo de enlouquecer
Se te obrigo
Mereces que te obriguem.

sábado, 21 de julho de 2007

Delirius tremens a quatro mãos (excertos-1ªparte/ a ser escrito actualmente...)

Estrugido de sempre

1

Não é de hoje que as pálpebras seladas soam a mundo,
nem de hoje que vos procuro
De sempre vos amo e escuto
E é de sempre que nos sou

Escuto por que onde acorrem esses membros,
que te abraçam como ao último
Por que “quê” desejaste vê-lo morto?
Confesso qual das armas a mais letal;
amor ou fome?
Escuto o que carrega o lirismo aos ombros, a vítima degolada,
um punhal quente e prazenteiro à ilharga
Ao longe, escuto gemidos que se detêm no prazer, e o crepitar dos
dentes...reconheço ambos
De há muito que o comedor de areia retine um jardim de bronze com raízes
vitéreas,
Escuto-lhe um último suspiro que me soa a redenção
Faço tão só por escutar o vento, coleccionando as folhas que traz
Por completar, um puzzle entregue ao nascer
O range range da claridade na sua eterna emissão, os cabos de alta
tensão,
Esta fatia de realidade, a paisagem,
a minha triste e sentida passagem,
O acotovelamento para passar, as portas automáticas, as buzinas
poliofónicas e os centros fabris, as formas de ver a terra da lua
A teoria do principio, o espaço e a expansão infinita,
Os debates e as terraplanagens, o estilete do futuro, o delírio de uma cura
A tempo
Escuto tudo numa confissão – alguém nasceu cedo de mais.

2

Acordei sem sobressalto num acorde amarelo de amola tesouras
Com fome de aurora,
Beijo agora as flores, disseminando discórdia pelas margens de um poema em
branco
Com os meus próprios gestos faço como me ensinaste, naquele tempo
Da infância
Olho para cada um dos lados e só então atravesso, de olhos fechados,
chapinho nas figuras, pelos campos
Confio nas amoras
Como quem conta uma história,
Sou o apóstolo de mim e demando a mestria de me bastar
Acto duma voz de sempre inventora, o final feliz
Limio a escuta na margem escusa do rio, num triângulo rectângulo e oblongo
Firmado sobre a corrente,
Sou a ponte-sílaba de nós,
A censura das palavras em borbotões de silêncio.

Do meu derrame conta-se uma fábula arenosa, um desabrochar doloroso e,
mais tripas de fora.
Serei um dia como tu, que soas a canto fúnebre arrependido de tudo,
que sabes ensandecer devagar
Serei a nossa janela e única saída deste paraíso em chamas, tão aqui
É-me dado escutar o crepitar neónico desse reclamo moderno:
Eis o primeiro moderno, o sol pálido, a pele branca e uma água tónica;
Aqui o que não se escreve, o que se deve sufocar, as últimas palavras,
A voltagem máxima que move a engrenagem, a dinâmica total tendida para zero,
Ah, se isto tudo funcionasse bem, como nos livros...

3

Lê o amor, a página branca que mancho
Escuta a água sobre a cabeça, bebe mais uma trago do rio Jordão,
Lembra-te de mim,
Com sede,com muita sede
Escuta os que morreram sedentos nos jardins da babilónia, os que mais
próximos estiveram,
O lamento dos que tudo perderam, o júbilo uterino
Escuta o motor pleno de ciência, o conhecimento combustivo,
Encima a torre com os teus pés de barro e cabeça alada, cobre-te com a prata
dos astros
Ouve-me a beber sofregamente, escuta a banda sonora que te pariu,
a dor próxima e o prazer doentio,
o princípio da sofrologia,
Escuta o livro do mundo, quando se fecha, a capa dura que o faz durar
Chega no lombo de um burro, ou de um Titã mal entendido
Escuta os dedos do balconista sobre o tampo, a vaga ansiedade e a beleza do
seu gesto,
Atenta o assobio do marceneiro e a telefonia imunda,
Delega-te a interpretação principal, uma voz de tenor e os sentidos aplausos.

4

De mim não se ouvirá um só aí contra a vida, mesmo que chore, mesmo que o
meu canto soe funesto,
Sou a alegria que nos sepulta, as lágrimas de falsete que a trovejam
o que há-de ser;
O brasido que queima aquém, um coador de palavras soando ilegível,
uma alma entrelinhas

Não há por cá terra livre de armas, nem homens livres sem virtude.
No seu lugar vai-se urdindo uma trama até ao regresso do Senhor
Sobre as águas, escuto, entretanto, a labuta dos pescadores no seu tear tosco,
as mãos sobre as redes,
Eu, o que com pressa as lanço ao mar, a ver o que brinca,
à sombra própria dos ramos altos
O inimigo mortal das musas, cansado polidor de palavras,
Não importa o que sou, mas que apenas consinto cair por mim, por ti e por
todos os que se deitam sobre granadas
Sem ninguém por perto, passeio-me instintivamente ao fim da tarde pela
cidade ou pelos campos distantes
Sou o bouquet que escondes atrás das costas suadas, a circunvolução dos
girassóis,
A melopeia sustenida, o amarelo torrado das beatas, a extrema esbaforida das
tuas asas, no seu toque de Sol
Adestro-me nesta ciência ultra planetária, e a planície roxa diz-me respeito.
Não, não desmaio nos campos,
Sou sobre tudo um labirinto de papoilas,
Às vezes um cedro gaiola duma espécie de ave extinta
Amo o verão das vindimas e trago cestos de vime cheios até cima, com as mãos
pegajosas,
Guardo uma alma setembrina, e um vício oceânico
Vorei os ilhéus por fora e eviscerei o mar,
Constrange-me hoje a nota melancólica que sopras debutante, e invejo como nunca
as artimanhas suicidas de que forras o teu sepulcro, o risco com que mudas de
estação,
Mas o meu egotismo é vaidoso e impede que avance inconspícuo
Nós dois não temos segredos – lembras-te?, oferecemo-los todos sem reservas.
O que quer que me escondas, só guardas de ti próprio. Não me privas de muito se me
tiras o sol,
O meu caminho é nocturno, dormido entre morcegos e penumbra.
Tu nada podes contra a noite, mesmo que a leves,
é minha e, o coração de chumbo é o seu brilho
nesta parcela da terra, a beleza da colheita
Canta, canta o silêncio ébrio, arrasta a madrugada, ergue o triunfo das manhãs em
louvada e nova alvorada
Que eu escuto-te prenhe de queda e só sou livre quando a cantas.


A-caminho

1

Para trás os lençóis de linho, o sonho pervigil, o vociferar exangue da tua voz
Para trás a distância, os passos escutados e os arredores que não percorri
Para trás os que se preparam para partir como tudo o que não regressa,
a ombreira da porta que faz toda a diferença,
Para trás a eternidade dos poetas, o amarelo das azedas, os dentes que as
Rasgam, a mastigação voraz e, eu todo,
Para trás a verdade que quase fui, a derradeira miragem de um deus do
deserto, uma nova forma de te tanger, meu deus,
a única e nenhuma
Para trás o caminho que fui, o decalque árido dos teus passos, a veludo,
Para trás, o que sou, apesar dos frutos roubados, os mandamentos e novos
pecados, o ser vibrante de azul e lamento
Para trás o olhar flácido da rua, uma ideia de tempo, o espaço que pariu a
verdade e a possibilidade do ser
Para trás a matriz ontológica da matéria, e o que vem a ser isto Tudo,
Para trás o futuro, uma cidade submersa, o progresso e a evolução,
Os romances que li, o castelo de metal cegante e uma promessa de regresso;
Para trás a questão, a existência de Deus e a fé dos apóstolos.

É tempo para haver quem olhe por mim, de me confiar
Tempo de encantar refúgio na colina entre as cidades, e crescer o próprio
mundo até lá, içar aí um abrigo e viver do que me dás,
É tempo de decifrar nas fímbrias cinzentas a razão do azul, na extrema alva
da tua clavícula
É tempo de ser a cavalo e aprestar o salto, viajar nas aljavas do vento repleto
de cupidez sedutora,
Tempo de prescrever-me nuvens pelas tardes magoadas, como a ti receitaram
recortar folhas verdes em escrupulosa simetria,
É tempo de olhar o espelho espiral a baixo, reminiscendo o travo do
abatimento
Comer uma maçã vermelha e reassumir a guarda, armar-me até aos dentes
contra uma extremidade qualquer,
Correr sem olhar para as margens, perfurar a montanha e desaguar vazio
Tempo para haver um amigo, observá-lo com redobrado cuidado e despedir as acácias
aspergidas pela hera
É tempo de beijar o chão, agarrar os cabelos junto à nuca, estilar uma cora de
espinhos, sobre tudo
É tempo reler o poema e arar o campo à força das mãos, apurar o raça do
refogado
É tempo de entre nós e a tumba distar um sorriso, de sacudir o tapete e rogar
pragas ao juízo,
De argumentar contra a guerra e de temer a invasão dos astros
Tempo de retroceder duas casas ao lugar cândido da infância,
e de só te obedecer aparentemente
É tempo de me misturar com eles e fingir melhor, de revisitar o quarto
arrombado pelo sol
Passar as mãos pelo rosto e aguardar as palavras
Tempo de tomar de enxurrada a manhã, descomprimindo-a na planura das
tardes
É tempo de cantar o mundo, desassossegar imagens, de arrastar as asas e o
delírio
É tempo de ser outra vez, para trás.

2
Desço a rua num socorro silencioso, espezinho as pedras mais pequenas
Desvio-me dos penedos de betão
Não conheço rumo, jangada ou plano, dou-me pela foz e no cume das serras
Não sou dono do ar, nem das águas, nem do sol, ou do tempo, mas o
coleccionador das tuas palavras, perito em porquês,
possível compulsivo
Sou tudo coisas estranhas e inoxidáveis, de volta ao capricho da Primavera e ao
desperdício das cores
A garganta ciciante do rouxinol barroco, esbaforido de placidez
violeta,
O cunhado dum fim de tarde na melancolia dos que admiram o céu

Ensinas-me, meu amor, a escrever-te sem dor?
A história é simples, e ainda assim guarda todas as histórias do mundo,
contadas e por contar
Vai directamente ao assunto sem esperar, repleta de curvas e
contracurvas, sinápses e viadutos desafiadores
Entre Lisboa e lugar algum, empreende o caminho mais longo entre dois
pontos, desenhando de um jacto o projecto existencial da galáxia.

Tento não pensar nisso, desvio o olhar para o tabuleiro de damas
que adorna o jardim do costume,
Prefiro divagar sobre a vida dos reformados, forçando o paralelismo com a
existência urbana dos pombos
Adestrar-me neste ofício de tédio
Debater a situação num dialecto profeta, usar-me em retórica delirante.
Mas em breve não disporei de damas ou reformados, nem jardins,
os melhores têm hora marcada e um vigilante ansioso
Ele tem casa, família, e um ror de dívidas às costas, ama a vida,
e o trabalho nem sequer é duro
Acima de tudo, é um profissional da vigia, atento aos movimentos da barbárie.
Sempre é melhor que guardar a faixa de gaza, com um colete à prova de balas
e o coração nas mãos
De metralhadora em punho, brindar ao futuro de mãos vazias
E, para que não haja surpresas, começar a ronda pelas sítios mais solicitados
pelos bárbaros coloquiais.
Sei do que falo, estudei autisticamente os seus gestos, e não encontro
problema em dissipar vestígios da minha presença.


3

O gato entremeando as minhas pernas, mostra o caminho
Bem sabes que acorro a todos febrilmente, e que todos as estradas levam à
praça central, onde se bebe o melhor café e a vida desvaria nas silhuetas
taciturnas de néctares profanos
A promessa é de amores levianos
“Ó sulco no meu coração”
Sirvo-nos uma bebida social diuturna, seguindo os
passos incertos numa certeza demente
Semeio os bêbados pelas valetas, e só por acaso desabrocham da minha
solidão, fendidos de prazer bravio
Amanho a terra da loucura e colho os dias estranhos, atrás dos escombros
de um olhar de louça
Sou espião de um amor inexpiável, escadas a baixo
O abismo infundado, onde uma só estrela canta o mistério azul-veludo.

Abocanho tudo com felinia e agito freneticamente os dedos,
retesando as unhas, mato agora de prazer, uma a uma, das coisas de
Deus
E desfaleço a seus pés, expiando o este outro pecado.

Mas és tu, que me vales, mais uma vez no caminho, como pela tarde a sombra,
arduamente
Que apressas o tempo para que torne à nascente, delírio verbal
Que apagas de novo a luz, de regresso às trevas celestes
E provéns o luar em breves termos
Que aguças a vaga furiosa, ornando-me dessa bijuteria dos cumes
por onde te demoras toda a noite a embalar o branco
És o que reflui metamorficamente o caminho e a perdição escarlate
Que nos admiras ao espelho quando o sol encandeia,
e que o fitas de raspão
Que me mostras escasso para tamanha dúvida, por aqui
És a mãe que esbofeteia os filhos, a carpideira que canto
através deles
O olhar baço que os aprisiona, a frustração e a vida...
O meu legado, a tua loucura.

4

Por aqui, canto ainda o caminho e as pedras, as golfadas de verde revessadas
os que a tempo atravessam
O baldio silvestre, o caniçal, todas as caras e passos, atrás de mim e adiante,
as vinhas e os olivais, o traçado geométrico dos campos, as lezírias, os pomares
em flor, e as colheitas
Canto a plantação e a ceifa, o asfalto e a velha ponte romana, o alto dos ais, o
vento irremissível que o habita
Canto os plátanos e os animais vivos, as aldeias, as vilas e as cidades, os jugos
mecânicos e os vagões urbanos, sarapintados
Canto o ruído sobre carris, as remodelações civis, as golfadas de malmequeres,
os morangos, as dunas e o vagido tonto do mar,
Canto a desflorestação e a lua, o beco da infância, a contra mão e a rua,
o sentido único dos corações,
Canto os pinhais, o verão, o ribeiro, as azinheiras, as águias e o seu adejo
espiral
Canto as embarcações e os portos, o areal granate, e as amarras lassas,
as falésias, as gaivotas, o mar, a manhã, e as cinco da tarde,
Canto o fragor demolhado, o orvalho aos ombros, os meus pés em movimento
e as botas puídas, a procissão, as janelas incandescentes, os castelos e
os templos esquecidos
Canto as torres de iluminação eléctrica, as vitrines diáfanas, as promoções
e todo o progresso
Canto o vento nos meus cabelos, uma flor à lapela, a ceifeira, os fardos de
palha e a terra penteada
Canto o acotovelamento público, o ar impoluto e o resto, a chuva
e todos os abrigos peregrinos
Canto as paragens, as fontes, as margens, a beira mar, as nuvens soltas
os pastos e os charcos longínquos
Canto a meia noite, a lua nova, o néctar das manhãs,
o nevoeiro vespertino e as noites indomadas
Canto o grito das fragas à noite, o azul turquesa e as baias,
os que chegam e os que partem, os que fazem pela vida
Canto a estrada esmaecida na praia, a construção e as gruas na encosta, a
alegria dos que trabalham
Canto o roçagar da erva húmida, a alma das esferas e uma epopeia de betão, o
metal erguido ponte sobre a torrente
Canto os corredores verdes, as estações e o gorgolejo dos rios,
os sulcos compridos e as tempestades, o murmúrio promíscuo e as enxurradas
Canto a vilania e o perdão, o espaço profícuo e as estrelas, o cometa incansável
e o paralelo preto do chão
Canto a alvura e o seu mistério de sempre, os bosques brumosos,
as colinas profanadas, o voo alto e as emboscadas
Canto o coração e as entranhas, as vielas escuras, o corrupio dos fantasmas,
o caos e as cores
Canto-me a ti...

5

O meu ciclo dilui tudo num bocejo, onde a alma descansa em vapores e
morfina
Sou por onde a poesia se entrega em mãos,
os meus dedos equipam diligencias d’um génio prestidigitador
Avancei a fronteira, o último bastião, fui o traidor, de absolutamente ansioso,
por quem nunca chegaste a tempo
O que se arrependeu tarde demais e quase morreu sem nada.

Fui sempre uma questão de terraplanagem
A canção imprecisa e fora de tempo
que a todos chama para esfaquear fatalmente os tempos mortos.

...Preciso de ti para amar, preciso de ti para matar
Tenho-te em todas as ruas, por todos os caminhos de que és porta
Beijo a fenda escura, renasço e ajudo a nascer,
a realidade do prazer, a atracção total e o choque
inrazoável
A minha vida é o ponto exacto onde te dás poema
A expansão e a redução cósmica a um só tempo
Fui seduzido, ou deixei-me levar pelo fogo, assim que toquei a lua
Nesses lábios que queimam
Aprendi a admirar os que na espera pelo último império,
içam uma ponte móvel sobre o tédio.
Observo hoje a tua escrita em tempo circular,
Estudadas as novas cidades que sobre outras ergueste,
Sei as histórias de algumas nações que anexadas.
Disseste-me que entre nascer e morrer havia um único momento
Em que nascendo se morre, amando alguma coisa
E eu acreditei
Ser mais um a-caminho.

Nota: a presente aparição não cumpre em absoluto a formatação original dos textos.

domingo, 15 de julho de 2007

Execução

Desde a primeira palavra
Mato a sede a espinhos
De dias revistados, fundo só um amplexo
Basculante, gesto silabado
Desde a primeira palavra,
Vaso-me em placidez escumante
Reinvento a morte em massa
Num suicídio colectivo,
proponho-me um fim,
Desde a primeira palavra
quero por ti
Seduzir e matar
Desde a primeira palavra
Escolher a rua do resto do tempo
Embalar meninos no pranto das seis
Ao lanche inocular-me algum veneno
Desde a primeira palavra
Jogar-me numa personagem sem tacto

Desde a primeira rua
Ser o tempo
E viver do vento
Nas margens recém libertas
Bastar-me num alambique de sangue escuro ao dia
Desde a primeira palavra
Escamotear o modo de te aparecer
Todo por ser
Desde a primeira vez
Adivinhar-te o fausto gesto
Num Instante fotográfico
D’ execução do tempo
E de quantas atmosferas se inspira o espaço,
Enredar por atacado e, por toda a parte,
A cultura de castanhas à saída do metro

Desde a primeira palavra
Enlançar o perigo
Num jogo duplo evasivo,
De mãos às ilhargas
Enclausurar a besta a pulmões de alcatrão
Recobrir o empedrado doutra civilização
Por tanto tempo, demorar o sonho
Orvalhar a memória dardejante-
Pálido-tom-de-acabar
Desde a primeira palavra
Viver a última.

Autofágico, talvez

Os convidados chegam aos poucos de propósito
demasiado impares, talvez
a gula seja escassa para assaltar a Suíça
e os sonhos de neve-à-chama transpirem das coisas do mundo, talvez
a avó nos vá servindo animais torrados ao domingo
e roamos as unhas antes de devorarmos os dedos, talvez
um pôr-do-sol ao deitar e outro ao levantar
três vezes ao dia, talvez
uma caixa doutra coisa também faça bem
antes do pequeno almoço e em lugar do jantar, talvez
engolir o frasco depois de o destilar
num chá preto aos ratos, talvez
só custe a princípio enquanto não se habituam os olhos
no meio livre do pensamento, talvez
se possa abandonar este repasto de vez
e nem seja indispensável morrer à mesa
talvez,
seja já tarde para taisvezes

Lobo Antunes

A rua escorria num murmúrio aveludado. Ao longe, as máquinas obedeciam conformadas, revolvendo a planura. Era verão. Embora o outono berrasse do outro lado do mundo, não passava duma valsa anoitecida.
Domingo de manhã, na placidez da cidade encolinada, havia farelos para os pombos e mãos sujas para os pulverizar. No momento em que o tempo encravou a vida e cumpria glorificar o ócio, procurei um sítio para apreciar o caminho e fumar o último cigarro.
Acenei-lhe uma última vez, já dentro do automóvel.
Chegado da narrativa pretérita. Estou aqui e agora no varandim do precipício que sou. A criação em mim boceja e colapsa. Estou demasiado próximo para temer. Tão dentro para sair. Vejo as costuras infectas do mundo, por dentro. E digo-lhe:

«Tu não és só louco meu amigo, és mais um. Lá fora há um outro hospital. Também a mim internaram... Lembro-me de dizer isso mesmo à minha mãe – «Vejo-os a rasgar as paredes... Contam-me histórias de desconhecidos...» São essas histórias, meu amigo, que hoje tenho de criar.»

«Mas não foram elas que me prenderam aqui?!... Então escuta. É natural que não notes o início da história, pois essa começou antes de ti. É a história de quem se encontra emparedado entre si próprio e ela...»

«Conta-me tudo isso mais devagar.»

«O narrador cósmico do mundo, não tem idade. Tem resolvido desde sempre o enigma da criação. O seu irmão a quem prezo igualmente, tem a idade do espanto e é o construtor dos esfinges. Passam a lucidez à lareira e fumam desalmadamente. Acho que tabaco não os mata... Eu sou, segundo me disseram, a história do enigma da criação, e sempre que falo estou na posse do sentido profundo das coisas.»

«Devagar..., para que te escreva.»

«Estão todos mortos. As suas visitas ocorrem numa sala sem portas nem janelas. As paredes abrem-se-nos pois não passam de metáforas. Quando não me visitam e a sala fica vazia, e tudo pulsa nessa ausência. Nesses momentos não há história que me valha. Caio em mim e vejo-os pendurados junto das restantes máscaras, vazios e inexpressivos. Sinto qualquer coisa junto ao pescoço, uma espécie de aguilhão que também a mim dependura. O meu corpo parece então morto, donde o vejo, desinspirado entre cadáveres. Sou então uma máscara de mim – espécie de narrativa pousada numa alma poética.

«Então e se vestires uma outra máscara... Pode fazê-lo!?»

«Mas as máscaras não existem. São como as paredes da sala de visitas, como as visitas e as suas histórias. Por isso estou por aqui... Sabias que este jardim foi em tempos um lugar onde a loucura os colhia na flor da idade?»

«Percebo agora porque te prezo meu amigo. Não sei por que diabo me transformei em escritor. A folha branca não consente recuos definitivos mas desvios e um delírio reinante. Talvez me ajudes a semear um pouco de caos lá fora, onde obsessivamente são erguidos escolhos ao devaneio. No delírio dos meus irmãos aprendi a cultivar a meu.»


«Então escreve no teu relatório o que te vou ditar:
Hoje visitei um amigo na sua casa. Perpassei as paredes como um fantasma e sentei-me à lareira. Conversámos durante algum tempo. Fomo-nos relatando mutuante. Contou-me qual o meu papel na sala. Debruçamo-nos entusiasticamente sobre a loucura.
Sei agora quem faz o papel de louco.»

terça-feira, 10 de julho de 2007

Um do outro

Candente na noite, Aquela cujo destino se cumpre no roubar dos corações, avançava ao encontro da brisa marinha. O corpo sibilante espartilhado no sobretudo fechado, descaía como um véu sob a face espumada das águas, semeando-se descalço no difícil caminho.
De soslaio, serpenteando um ritmo, o penedo que norteia a falésia cobre-se também de prata, fazendo-se escutar esmagado nas vagas que nunca o cobrem totalmente. Mas Ela avança, insuspeita para Ele, que está longe demais. Corre mais depressa do que lhe permite a razão e, ainda em terra se afoga.
Fica um nome gravado na rocha, por longos anos, a dança moribunda inscrita na areia, o vestido branco flutuando na maré vazia. E Ela nua, fria, lembrada com um nó no estômago.


Aguardavam um pelo outro, fugindo cada qual de si próprio. Mal se conheciam, mas isso bastava.
No primeiro dia em que se descobriram não havia saudade. Era Ele dela e Ela dele; um, sem saber do outro, desde sempre, em correria um para o outro.
Ainda criança, descansava neles o amor; tinha o rosto da mãe, da irmã, do avô, mas não se esgotava aí - faltou sempre um outro que esgotasse o amor; um nada de parte a parte e um desejo sem fim.
Naquele dia chovia. E havia melancolia. A multidão tinha um olhar, cabelos longos, pele branca, muito branca, um vestido escuro, uma silhueta. Naquela noite adormeceu o sono.

«Posso apagar a luz?»
«Não, deixa-a mais um bocado...»

Estava diante dela, e Ela diante dele. O desejo entretecia suavemente o universo, atraindo-os para o seu centro. Apressou-se a beijá-la, porque ela queria ser beijada depressa. Os dentes batiam no dentes, a boca retraía-se ao choque, mas de novo corria procurando a outra, sem se descolarem os lábios, o mundo ruía no silêncio gritante da rua, o sol e a lua esbatiam o tempo, simultaneamente, noite e dia não eram nem uma coisa nem outra, mas a síntese transeunte do amor. Ninguém chamava. Ninguém os reconhecia, tão altos, encimando a torre dourada. O medo era pequeno, insignificante. Acima das cabeças o céu estirava uma fina película, trespassada mais adiante. Ao longe, chovia, abaixo das nuvens; todos se guardavam da chuva dentro das grotescas casas de xisto. E o vento uivava nas ruas, dobrava os ramos. Mas naquele egocentrismo dual, não havia para onde ir. Ele era dela e Ela era dele.

«Amo-te. Sempre te amarei. Sempre te amei, meu amor.»

As lágrimas corriam dentro do peito, florescendo num sorriso que tudo iludia. Mas eram felizes, tão felizes sem saber.
As noites longas eram escassas para suportar o desejo. Por isso escreviam-se cartas; palavras a mais para o vazio, vazias demais para o amor. Ao serem lidas parecia que Ela era mais importante que Ele, e Ele importava mais que Ela, parecia que Deus os havia abençoado, deixando a vida de um ao cuidado do outro. E Ela já era quase tudo. Ele não podia viver longe dela. Queriam morrer nos braços um do outro, mas nenhum deles tinha braços; no seu lugar expandiam-se dois céus, dois sóis, duas luas, dois abismos suspirantes. E dois mundos gravitavam dentro do amor, em torno dele. Nada disto se via, nem se podia auscultar, mas sucedia a par da timidez de ambos, à medida em que crescia a saudade.

Naquele dia, começou Ele a morrer, e era Ela quem o matava, devagar.
Naquele dia, a sombra dele corria, mais depressa que o corpo -;

aluía o preto e branco nas flores, pelas cores, adiantando-se a descompasso nas reentrâncias da parede, submersa no beco onde não alcançava a manhã.

Naquele dia, Ela saiu, levando-lhe o coração.
E desde aquele dia, Ela ficou assim, sem que Ele a conseguisse mover -;

uma nuvem de pedra. « Turner...», exclamou Ele. O temporal junto à costa, o céu feito de chuva, a penha mergulhada no inverno despedindo-se do Outono!... A minha vida é um vendaval que o mar tem de engolir, uma nau fundeada com a praia ao largo, apressou-se a escrever.

Abria então o reposteiro negro, e de púrpura se tingia a luz interior, guardada como um segredo. De dentro do clarão purpurado, entreabriam-se miríades de flores inclusas numa última que as segurava ao centro, transparecendo-o em espiral para o seu íntimo diáfano, surdo-mudo, paralisado, quase totalmente, gritando ainda no silêncio do pensamento – a beleza!
Norteando a insónia, que o pregava à falta dela como a uma cruz, alongava-se do seio da cor, transparecida de nevoeiro, a falésia sedenta de mar. E todas as vozes se misturavam perigosamente na sua, que chamava por Ela, tão próxima, pulsando ali, ao dobrar de cada instante, tramando o manto da noite.
Queria esquecê-la, só, mas também vê-la, uma última vez, morrer aí sem adeus ou saudade, com Ela nos braços e por dentro dela; ao longo dos cabelos, perfumando-a num fulgor ansioso, para que Ela se lembrasse do que ainda não via, e a eternidade selasse num derradeiro ribombo, a certeza de que Ele era dela e Ela era dele.
E às vezes parecia que tudo regressava com revigoradas forças, definitivamente. E era claro, tão claro, por que a vida era Ela ser dele e Ele dela -: tão longe, ninguém se arriscava e o amor tinha de ser verdade.
Mas a tempo Ela lhe doía. E de novo se enchia o quarto, a cidade, toda a vida com a sua ausência pregnante. De novo o medo ladeava de noite os passos em frente, e, para súplica dele, o abraço cingia-se em dois trémulos membros vorando o vazio -;

Ela à distância das mãos, por toda a cama, suspirante, perfurava a dor com nova dor, até não se sentir mais nada, semeava o futuro sem expectativa e crescia, dolorosamente, de encontro ao caos enclausurado no peito, rodopiando com uma segurança felina ao longo do parapeito que Ele queria saltar.

Contra os dias de futuro difícil, avançava Ele com chuva pela frente, aligeirando o andar, atravessava sem olhar, sem medo das ruelas estreitas onde se esconde o fedor da espécie, nem da voz demoníaca que o distraía do sentido.
E Ele morria se não a visse.
Mas Ela resistia e deixava-o cair.
Ele chorava. Chorava, porque era Dela.
Já perdido ainda temia a perdição. Tremia só de pensar que tudo podia levar o desespero, não poupando sequer o tempo para que das antigas frutificassem novas viagens.
Mas havia tempo, muito tempo para esquecer. Tempo para esperar – «A vida continua» – pois, como se vê, a vida vence sempre, e continua, brandindo o moribundo numa centelha de vontade. Como se percebe, é tudo uma questão de tempo.
O problema era o tempo, a espera, o alcance do sofrimento. O problema era o amor. Era Ele estar fora dele, por culpa dela -;

tudo uma mentira. Um ser à beira de cair noutro, limiando o fim. Foi tudo um nada presente, do tamanho do tempo. Um vislumbre do caos a perder o medo, a distender a vida para lá dela, para lá deles, numa esperança imortal e cega. Foi Ela longe, e o mundo a acabar aos poucos, desabando ferido de morte, persistente, nauseante e pesado. Apenas um pretexto para que a vida vencesse onde não se imaginava que houvesse vida. Foi só um instante.

Mas nos ouvidos dele uma língua se enrolava. O segredo escorria fluido, escumando no silêncio sem cor, a cor do silêncio, altissonante – é a voz dela lampejada de murmúrios, aspergida num só tom, num só sentido partilhado na frase -;

«Agora somos só nós, outra vez. No fundo nunca deixámos de ser nós... que valemos por tudo o que virá.»

As palavras dela, como faróis mediando dois abismos, traziam as margens para o rio, brotado da nascente morta, abaixo da última profundidade da terra -; um firmamento de sangue coado, atravessado no relâmpago que ilumina a sombra.
E de desejos estranhamente seus, agarra-se Ele ao vestido dela, como a uma bóia de salvação.
Esvoaçam de fulvas asas, as harpias envenenadas de futuro – numa esqualidez de marfim puído, quase metálica, esmaltada ao meio da noite -, e só quem sonha os vê trepar os cabelos que pendiam dos confins da vida, à margem do tempo –;

«A todo o vapor, dá-lhe esperança, uma dose excessiva.»
«Finalmente chegou a medicação. Terá conseguido passar na fronteira controlada pelas tropas de ocupação.
«Eu começava já a pensar no pior. Com este tempo, mesmo que estivessem perto, dificilmente conseguiriam viajar.» «Isto só funciona se tomares muito.»

Falavam todos ao mesmo tempo, como porteiras desamordaçadas após um mês de cativeiro. Mas todos queriam dizer o mesmo -: «Tudo recomeçou» -;

a Primavera florida numa janela para lá do inferno, entretecida nele, lânguida, devota ao ciclo em frágeis botões estacados na geada, confiante do seu tempo, que chegará.

Era como se o sol estivesse dentro dele, dentro dela, dentro de tudo o que se despedia na subida. Ele só tinha de ser o que havia para ser; tinha de adormecer para acordar junto a Ela; tinha de morrer para ter vivido por Ela.
Era preciso tê-la para sempre, sem pensar muito nisso. Queria que Ela fosse o que só Ele podia ver, e lhe oferecesse apenas o que implorava o desejo Dele -: o rosto dela do outro lado da nuvem espessa, a sua voz no extremo distante da linha, falando-lhe da vida.

Mas os sussurros longos dilatavam-se, e só o silêncio soprava, transindo os espectros que, bordejando a torrente ardente, guardavam o bosque infernal num colete brumante.
No flanco aberto onde se estarrecia a noite, estiolada duma pouca luz, deixa Ele mais um suspiro por Ela, desalastrando o próprio corpo até Ela o tomar. Das lágrimas que mancharam de brilho a escuridão do vale, reflui enfim um precioso continente na profundidade do mar. E aí, só aí, onde ninguém os pode ver, podem ser escravos um do outro e morrer, naturalmente - Ele dela e Ela dele, sem que ninguém se atreva a dividi-los.

Sentido de estado

Expio um verme fascista fora do casulo
Uma saudade pidesca
De brilhantina e óculos de massa:

Renuncia à liberdade poética
Almeja uma política lilial, com dias contados
Dentro da massa de essência
Turvante etílico sem sentido
Boca fronteiriça e o fim dos lábios
Um desperdício de solidão.
Sorri quanto baste
Evacua silenciosamente
Com gravata distinta e luvas de pele
Aquando das visitas à Roménia
Visita-a assiduamente;

Mudou para lá o Tejo e algumas paisagens budistas
Fundou uma espécie de lusonacionalismo espiritual
Passa férias na Sibéria, como qualquer eremita moderno
Retracta-se com a alma e corre ao inimigo
Subservientemente, cria condições para a revolução de sentido
Dissemina a estranha nova
Pede, por favor, uma omelete com passas e puré de limão
E rapta a filha mais velha do vendedor de apólices
Junto ao parque de estacionamento
Declara-a guarda dos pessegueiros em flor
Confeccionista de recepções invulgares
E deposita-a no quiosque sujo da esquina
Demanda o pagamento em guardas-chuva ingleses
Tolerando apólices incontinentais
Previne a rua do seu outro nome
Do centro do árctico publicita uma bebida trasnsiberiana
Explodindo a atenção dos turistas bascos
Sublimina o hábito selvático
Autosegredando como poucos a moral
É o nosso homem!

Caso de amor, jazz e contrabando de dor

Eu, a pão e água no jardim moroso
Ela, a raiar o enfado satiricamente
Eu, preguiçoso, rosáceo
D‘elegias dementes
Ela, abundante transtorno
A fugir-me à visão
Eu, vislumbre insofismável...

Sob a secretária onde incha um processo a preto e branco
E se Respiram cigarros clássicos, o caso deles
Envolve uma loura sintomática
E vários chapéus de abas largas
É um caso de melancolia passional e enredo pétreo
Um caso de amor...

Saiu de casa cedo
Com um punhal arabesco,
Fumou o canavial com aquelas coisas e tudo.
Havia já cerca de três horas não caía em tentação
Mais ou menos como no filme
enforcou-se no vestido de noite
Segundo cálculos e jornais da especialidade.
Alguém a ameaçou a estrídulos de rua desesperada
A carótida fora cortada após a queda.
Mas ninguém se mata à toa
Foi ao que parece um caso de amor, jazz e contrabando de dor
Escreve-o depressa.

Vale de “Blues”

Vale de “Blues”

Vale-nos a bebedeira colorida
no concilio de escravos azuis
subterrados
os corações na forma de um grande toldo verde
recobrindo penas ardentes a esplendor ensebado
de azul-à-espera que o azul surta efeito.
Vale-nos o amor afogado de verdade
a segurança noctívaga das asas de cânfora
em livre trânsito pela Ásia
vozes dilatadas dentro da cabeça
segredos de algodão cuspido com a alma
e uma algibeira de talentos.
Vale-nos alcançar a repelões os lábios
a lengalenga interestícia
a febre feérica d’ acanto
os caixeiros viajantes de amor.
Vale-nos valer-lhes amar de mais géneros de dor
formas múltiplas de gizar
a boca lassa de bocejos
e o deleite morno do trocar de braços.
Vale-nos a valsa modorrenta
os reverberantes arranhas céus
ao fundo da escadaria uma morte assim pachorrenta.

DomingoD’Arrasto

Grav’Anelant’Suada

ÂnsiaD ‘AcordarPorQuaseNada

AlvorQuímic’Imaginação DeBerbequim

NãoSeiQuêD’Guia NãoSeiPorQueRaio

Quart’SanatórioD’ Sãos

SentidoCrochetBombástico

CapitalDaNáuse’ Europeia

CaniveteD’olharJugular

EstremunhoGeometricod’ pomar

VaporIntoxicanteMaterno

Bossa-Nova-Doce- Panaceia -De -Melancolia

Imelodios’ TomD’Infinito

MesmoDiaExpandidoVáriasTardes

MonçõesObtusasD’CaboLaranja

Escal’EmMercúrio

DeRegressósol

FuracãoMaduroPraCompota

LinguajarBoçalDumaBocaD’ Espera

EntreNoite’SemRemédio

SudárioDeplanici’Estreita

NovaManeiraD’EmaranharCabelos

LetrasLinhas’E PalavrasCansadas

Por Aí

Nesse outro estilhaço malabarista, vertido a silêncios roxos
o tacto é d´inebriar, por acaso
a brisa uma valsa etérea, revestida a campânulas d’aço
as mãos são de cânfora, implorando mais um whisky puro
de brindar às putas.
Do amor sabe-se uma história que acabou mal
e que nada domina a perícia de te ter fechada em casulos de barro.
Quero aí muito mais de ti sobre os plátanos
mais de dentro, espiar o que daqui parece um sopé clandestino,
queria que não fosse só quarto vazio de versos brancos
a intervalos impotentes
mas a invocação despudorada de um Deus perdido d’ amor.
Sacrifico aí todo o vício por um cigarro
ou um pouco que seja do frio na cara.
Escuso a metafísica como doença de que padeço nas férias
e essa silhueta com que saldas exalações de mar.

Adumbração d’embalar

Vivia duma neblina
Mascava o lábio inferior
Escrevia-se de modo pouco musical

Quando a manhã o agarrava pelo pescoço
Sonhava com colarinhos brancos
Era uma caixa de cartão à tanto tempo...

Divagava o seu hálito matinal
E da montra de esmalte
Impendia o cigarro mantido apagado
Subscrevendo replicadamente o manifesto

ADMITO A REALIDADE / admito a realidade

Acendeu o cigarro e mentiu

Debaixo da almofada guardava a pistola
As balas tinha-as o coração
E tudo porque a luz não era um rio de verdade
E o sol inundava tudo
Porque inocular a sombra matava
E mais por ela é que vivia

Havia muitos fogos que não dormia
Era um laivo escarlate aquecido de morte
Dividindo a cama com um glaciar
Ébrio de sol
Tinha um filho anónimo
Que carregava nas costas largas de Sísifo
Porque tinha mais que fazer
Amava por correspondência
A memória que não lhe pertencia
E passava os dias a morrer

Era uma coisa como outra qualquer
O que é?
Perguntava e sabia responder
Em grego e só depois em Alemão
Nem uma coisa nem outra
Mas o sol exangue na escuridão
O futuro gotejado numa lâmina d’inox
A irradiação implodida

Venerava um velho metafísico
Que o esfaqueava pelas costas
Planeava ficar órfão
Mas a luz tinha a forma de berço
Como um tendão enastrando a espada
À noite velejava, um azul de metal
E deitava-se à sombra das rajadas

Armado até aos dentes
Aninhando-se na suspeita
Corre que pedia à sombra para lhe selar as pálpebras

Nº 3 da Rua da Metafísica


Era do género livre para descer avenida e assassinar o primeiro técnico informático, alegando que o nó da gravata não deve ser tão tosco; Subir às arvores de regresso, mirar a vulgaridade dos namorados e seduzir a praça inteira com cigarrilhas Bolivianas. Livre para amar obsessivamente, irromper pelo cinema furtando a inestimável colecção de filmes mudos; Abusar da confiança duns quantos cinéfilos altruístas e escrever muita prosa sobre a razão de ser; Estiolar Agosto após o almoço em solestícios importados.

Havia dois meses que estava emboscado no quarto, disfarçado de criminoso, sabia-o pela televisão:
«Por volta das duas desta tarde pós moderna, uma mulher, empreendedora, arrastou-se do numero três da Rua da metafísica em Lisboa, à beira da antiga praia fluvial, onde ao que tudo indica, terá falecido por afogamento. O suspeito, um homem de meia idade, desempregado por vocação, conhecido por se disfarçar de criminoso e manchar as instituições públicas com fragmentos de Heraclito, continua desaparecido. Segundo nos informaram, uma relação com a Ala Extremista do Tédio, a famosa A.E.T. estará na origem da sua fuga, a qual, até ver, foi bem sucedida. O alto comissário dos casos extremos das Mulheres Feridas em Casa Arrastadas Às Antigas Praias Fluviais (M.C.A.A.P.F.), alertou todos os cidadãos para a necessidade de se concentrarem junto à paragem de táxis mais próxima, para novas indicações. Lembramos que, o suspeito é perigoso e está a monte, vivendo de subvenções vitalícias, e que foi visto pela última vez com um livro de cautelas premiado. Os investigadores admitem a possibilidade do suspeito manter a insanidade auxiliado pelo jogo da lerpa, pois foi visto não raras vezes a jogar com os reformados. Segundo consta do relatório da porteira do 2º Direito: “quando o jogo corria bem não havia problema, mas quando desconfiava, ficava maluco”».

Congregação rara


Em agenda a questão da transcendentalidade da natureza.
Kant e alguns monges budistas representados na figura pop do Dalai lama prometiam animar as sessões.
A organização tudo fez para ressuscitar Kant, mostrando-se agradada com os resultados da iniciativa. Kant, no entanto, mostrava-se algo desapontado pela interrupção do seu descanso: «Sempre duvidei dessa coisa de descanso eterno», afirmou em declarações à radio.
Platão também viria em representação de Sócrates, o qual procuraram contactar sem sucesso – a presença de Platão foi aliás uma exigência de Kant.
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O povo acotovela-se no exterior do centro de congressos. A cobertura mediática fazia-se entender:
(«Até ao momento não há qualquer registo de conclusões.»)
No interior, extasiava-se a plateia na interpretação platónica da Metafísica de Kant e nos improvisos de Sócrates, que ao abrigo do código deontológico dos curandeiros, era tido como presença que só os mais possessos notavam; tocava com a alma, segundo os monges, havia sido no passado um instrumento de cordas divinais
A tempo de assistir por dentro a parte do espectáculo, coagiram-me a sair do recinto depois que todos os congressistas aprenderam inglês, facto que facilitou em muito a discussão com o Dalai lama.
Enfrentei os jornalistas numa entrevista esporádica.
Relatei parte do que vi à editora e pensei em suicidar-me.

Heterobiografia



Curso de habilitação profissional para o cargo de Porteira Cósmica
Disciplina – Alterurgência avançada
Exame Escrito de Admissão
Nome do(a) proponente: Zulmira
Descrição: Elemento activo nº [E] 523874786 [4]
Área – subúrbio L 1– categoria -
Ocupação mundana - Fumigadora de privacidades

I.H.P.P.C



1. Considere heterobiograficamente o sensor humano nº10990842(2) identificado entre os seus como José Carlos Freixo, exemplar da espécie humana, pertencente ao género masculino das coisas avariadas

A gente sabe o que ouve dizer –. Mas, eu estava lá onde e quando tudo começou. Foi em Lisboa no final Verão. Recordo-me como se fosse hoje; fazia um calor insuportável e, nesse ano de 77, o dia 17 de Setembro tinha muito para ser perfeito; a roupa passada e dobrada, as camas mudadas, os miúdos na colónia, o meu marido lá em baixo a polir o carro e a carne quase descongelada para o almoço do dia seguinte – inesquecível – os cães não procuravam posições inestéticas, consegui mesmo ir ao talho, que ainda fica longe do prédio, sem cagar – com licença da mesa – os pés. E, costuma-se dizer que o que não se sabe inventa-se –. Até pode parecer mentira, mas assim que o pequeno nasceu cheirou-me a algo aquilo que fica entre o esturro e a melancolia… Zás disse eu, outra vez aquele odor – o meu faro era então muito certeiro. Pois…, mas o pequeno tinha problemas. Era demasiado calado, muito pouco dado. Um dia até o levaram ao doutor das doenças da alma para ver o que se passava – se estaria doente da cabeça ou coisa parecida –; é que aquilo chamava mesmo a atenção das pessoas. Para mim, o que o miúdo queria era ar puro, o que quer que isso seja, ou então que o ensinassem a estar sozinho – agora psicólogos... Talvez por isso fosse um “estudante” medíocre, sabe-se lá. A minha teoria é a de que a escola serve para muita coisa mas pouco para estudar. Sim, eu sei que estudar é uma coisa séria, e que é isso que torna o estudo impopular entre os “estudantes”, mas qual não foi a minha surpresa quando o rapaz entrou para a Universidade e começou a estudar após anos de conflito com a matemática. Matemática…Como é que alguém pode não gostar de números… estranho, talvez…, para vocês…, mas a matemática foi das poucas incertezas que ele nunca teve. Foi quando se afastou mais de nós. Só mais tarde vim a descobrir porquê. Meteu-se – já se sabe como é a rapaziada nova – na filosofia, vejam lá. Com aqueles sofistas da Universidade Nova de Lisboa. Andavam assim todos preocupados, a comprar livros complicados, a falar de suspeitas... mas agente sabe lá... Quem nos garante que era só na filosofia que ele andava metido, ou se em mais alguma coisa… O certo é que desde então mudou muito mesmo no lidar com os vizinhos. Ser para cá, Nietzsche contra Sócrates, por outro lado, a estranha dupla St. Agostinho–Heidegger e o engagement da angústia; a doce composição solitária com o seu irmão – Flávio –; as viagens espantocêntricas – e, aquele trambolhão na paixão – essa Helena duma caixa de música… Iniciou-se por volta dos 24 anos na arte da metafísica, naquela oficina de poesia que, não sei sabem, inaugurou no quarto. O quê? Parece-vos estranho uma oficina no quarto? Mas é aí que as há!?, ou não é? Eu só que queria que vissem aquele corrupio de ausências, a azáfama de vácuo, aquela fumarada de por a cabeça à voltas; só para terem uma ideia, nesses dias, ninguém podia ter roupa estendida no prédio. O quê, quando a oficina estava a funcionar…? Sabem lá… o lixo que a criação faz, a gosma das pequenas ideias. Seja como for o homem tem licença para Ser, embora apenas recentemente tenha adquirido a licença para aborrecer publicamente. É, ao que parece, professor de Filosofia. Dedica-se, portanto, ao tédio juvenil, pelo menos acredita nisso. Mas eu sei que não passa de um sensor avariado da realidade.