A rua escorria num murmúrio aveludado. Ao longe, as máquinas obedeciam conformadas, revolvendo a planura. Era verão. Embora o outono berrasse do outro lado do mundo, não passava duma valsa anoitecida.
Domingo de manhã, na placidez da cidade encolinada, havia farelos para os pombos e mãos sujas para os pulverizar. No momento em que o tempo encravou a vida e cumpria glorificar o ócio, procurei um sítio para apreciar o caminho e fumar o último cigarro.
Acenei-lhe uma última vez, já dentro do automóvel.
Chegado da narrativa pretérita. Estou aqui e agora no varandim do precipício que sou. A criação em mim boceja e colapsa. Estou demasiado próximo para temer. Tão dentro para sair. Vejo as costuras infectas do mundo, por dentro. E digo-lhe:
«Tu não és só louco meu amigo, és mais um. Lá fora há um outro hospital. Também a mim internaram... Lembro-me de dizer isso mesmo à minha mãe – «Vejo-os a rasgar as paredes... Contam-me histórias de desconhecidos...» São essas histórias, meu amigo, que hoje tenho de criar.»
«Mas não foram elas que me prenderam aqui?!... Então escuta. É natural que não notes o início da história, pois essa começou antes de ti. É a história de quem se encontra emparedado entre si próprio e ela...»
«Conta-me tudo isso mais devagar.»
«O narrador cósmico do mundo, não tem idade. Tem resolvido desde sempre o enigma da criação. O seu irmão a quem prezo igualmente, tem a idade do espanto e é o construtor dos esfinges. Passam a lucidez à lareira e fumam desalmadamente. Acho que tabaco não os mata... Eu sou, segundo me disseram, a história do enigma da criação, e sempre que falo estou na posse do sentido profundo das coisas.»
«Devagar..., para que te escreva.»
«Estão todos mortos. As suas visitas ocorrem numa sala sem portas nem janelas. As paredes abrem-se-nos pois não passam de metáforas. Quando não me visitam e a sala fica vazia, e tudo pulsa nessa ausência. Nesses momentos não há história que me valha. Caio em mim e vejo-os pendurados junto das restantes máscaras, vazios e inexpressivos. Sinto qualquer coisa junto ao pescoço, uma espécie de aguilhão que também a mim dependura. O meu corpo parece então morto, donde o vejo, desinspirado entre cadáveres. Sou então uma máscara de mim – espécie de narrativa pousada numa alma poética.
«Então e se vestires uma outra máscara... Pode fazê-lo!?»
«Mas as máscaras não existem. São como as paredes da sala de visitas, como as visitas e as suas histórias. Por isso estou por aqui... Sabias que este jardim foi em tempos um lugar onde a loucura os colhia na flor da idade?»
«Percebo agora porque te prezo meu amigo. Não sei por que diabo me transformei em escritor. A folha branca não consente recuos definitivos mas desvios e um delírio reinante. Talvez me ajudes a semear um pouco de caos lá fora, onde obsessivamente são erguidos escolhos ao devaneio. No delírio dos meus irmãos aprendi a cultivar a meu.»
«Então escreve no teu relatório o que te vou ditar:
Hoje visitei um amigo na sua casa. Perpassei as paredes como um fantasma e sentei-me à lareira. Conversámos durante algum tempo. Fomo-nos relatando mutuante. Contou-me qual o meu papel na sala. Debruçamo-nos entusiasticamente sobre a loucura.
Sei agora quem faz o papel de louco.»
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